15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, dezembro 24, 2006

Mazurka Apassionata

O fumo dos cigarros amarinhava escandalosamente pelas paredes rascas de uma tasca de má fama com o nome vulgar de “Le Polonais Heureux”. Acção: Hamburgo. Zona: docas. Porque sim.
O tempo fosco e irritante convidava ao suicídio por acção directa, mas Álvaro dos Prados estava mais virado para a cerveja alemã. E a verdadeira devassidão etílica e existencial não podia encontrar melhor porto de abrigo do que “Le Polonais Heureux”, assim baptizado em homenagem a um franco-polaco tuberculoso que se parecia um bocado de trombas com Óscar Selvagem, vate céltico arrogante e genial.
Frederik ‘Show-Pain’ (dava-lhe para os “blues” e a música é que levava a toda a força com o granel melódico-depressivo) era um ‘habitué’ do “Le Polonais Heureux” e Frida Pizza-Khalos (a dona da tasca) resolvera mudar o nome do estabelecimento de “Adolfo Mau-Feitio” para “Le Polonais Heureux”.
Quando Álvaro entrou, o bofes-moles do Frederik estava sentado à pianola a tocar a sua mais recente mazurka: “Allez les Blues”, copos 68, alínea c). Fez sinal a Álvaro para que se lhe juntasse. O português abancou sem preconceitos. Com um gesto dos lábios e um trejeito de sobrancelha (só ao alcance dos bêbedos mais dotados) encomendou em morse-mais-ou-menos uma cerveja alemã e um “shot” do bagacinho importado de Campo de Ourique City. Pois evidentemente. O poeta tinha garrafa (trazida da santa terrinha) com poiso certo no “Le Polonais Heureux”.
— Então, man?
Frederik não era de grandes cerimónias com as palavras e Álvaro respondeu-lhe na mesma moeda, que não em marcos alemães.
— ‘Tá-se bem.
A amizade tem destas coisas. É capaz de juntar um polaco que desistiu de Zelazowa Wola (também... um gajo que nasce num sítio destes o melhor que tem a fazer é emigrar) a um português que não gostava de viajar nem à lei da bala, mas que chegou a Hamburgo de paquete, para tratar de uns assuntos a Herr Neuss Ferrari. Uns terrenos nos Cárpatos, uma trama assim meio para o psicadélico-transilvânico.
Cenas.
— Gostas da minha última mazurka?
— Já te disse várias vezes que isso da bazuka não é música a sério. É bonito, mas falta-lhe o sentimento do fado.
Frederik ficou um bocado sentido com a “overdose” de sinceridade de Monsieur dos Prados e embezerrou, depois de sussurrar de forma audível:
— O que percebes tu de música? A tua pátria é a língua portuguesa.
— Fred, a amizade tem destas coisas: é preciso ouvir as verdades de coração aberto.
— Álvarinho, sabes que curto de ti bué, mas a minha cena é mesmo mazurkas. Ando nisto há muito tempo. Em Paris toda a malta adora este “swing”.
— Música é Stan Getz, Ike Quebec. Saxofone a sério.
— Álvarinho, o jazz é devassidão. Olha, para já, um é drogado, o outro é preto.
— Tens de perceber uma coisa. Cada um com os seus paraísos artificiais, desde que não chateie os outros. Além do mais, não podes dizer que não gostas de jazz. Até aposto que farias excelentes duetos com Bill Evans e Kenny Barron.
— Essas gajos mazurkam?
— Não mazurkam nada, foda-se, que já me fizeste falar mal! São pianistas do melhor. Cinco estrelas!
O fumo dos cigarros manhosos e o cheiro a sovaco de puta misturou-se de forma subreptícia na atmosfera delirantemente subversiva do bar. Álvaro dos Prados desconhecia que desconhecia toda a essência de uma boa mazurkada.
Com jeitinho, à medida que os “shots” de bagaço iam amaciando o bucho do lusitano, Frederik ia convertendo o amigo à causa das mazurkas. Na pior das hipóteses, deixava-o na dúvida.
— É como te digo, Álvarinho, quem nunca mazurkou não pode atirar a primeira pedra.
Valha a verdade que Frederik tinha o dom da palavra. Percorreu o passado com inaudita titilância e, em pezinhos de mocassin, foi convencendo Álvaro da relevância histórico-musical da sua causa.
— Isto já vem do século XVI. Agora é uma dança polaca, mas está intimamente ligada com o oberek, a polska e o kujawiak.
— Do Kujawiak lembro-me bem. Foi mais um bom avançado que o Sporting queimou.
A conversa estava no seu Evereste intelectual quando, ziguezagueando por entre os moinantes teutónicos, se chegou à boca de cena o grande Jorge Sandes, amigo íntimo de Frederik.
Se Álvaro já estava quase convencido das virtudes éticas da mazurka, a chegada de Jorge Sandes acabou por se revelar decisiva, porque o raio do homem era um nadinha persuasivo no que tocava a masturbar os méritos mazurkenses:
— Álvarinho, sabes que eu até tenho umas zangas valentes com o Fred, mas quando ele tem razão sou o primeiro a dar o baço a torcer. A mazurka foi a melhor coisinha que se inventou até agora, no que diz respeito a música. A mazurka é a rainha das danças sociais, quando bem executada. E aqui o Fred toca que é um disparate. A Maria Nicolaevna, filha do Nicolau, criou a Polka Mazur, que é um disparate de qualidade. Estupidamente divina, ainda melhor que uma Carlsberg estupidamente gelada, num fim de tarde na Fonte da Telha.
— Não sei quem é a Maria Nicolaevna. Já há muito tempo que não vou às putas. E a única que conheço com jeito para tocar, aqui nas docas, é a Heidi, que toca clarinete e é só quando está bêbeda.
— Álvarinho, acorda, por favor. A Maria Nicolaevna é a filha do Nicolau I da Rússia e criou a Polka Mazur em 1830!
— Sabia lá eu!
Frederik e Jorge Sandes resolveram deixar a conversa por ali e foram-se embora, deixando Álvaro embrenhado nos seus embebidos bagaçais. Mal saíram, Frida Pizza-Khalos olhou de soslaio para Álvaro dos Prados e dos lábios saiu-lhe um “psst” mais sibilante que uma naja desempregada a caminho de um trilho no meio de ervas altas.
— Herr Dos Prados, o senhor é que sabe da sua vida, mas eu se fosse a si tinha muito cuidado. O Herr Sandes gosta de se vestir de mulher quando está sozinho com o Frederik. Gosto muito de o ver a tocar na bazuka, mas é um sujeito estranho. O meu dever é avisá-lo!
— Ah! que frescura na face de não cumprir um dever! Agradeço todo o seu cuidado, Dona Frida, mas sei as linhas com que me coso. E também sei as outras linhas férreas todas. Tive uma boa instrução, D. Frida. Hoje a miudagem não sabe nada. É o dia todo enfiada no buraco do Osório, aquele “bunker” infecto cheio de mesas de matraquilhos, cavalinhos e dominó. No meu tempo, se queríamos divertir-nos, víamos as moscas ao microscópio, tínhamos caixinhas cheias de calhaus, tipo feldspato, mica, hulha, coisas assim, D. Frida. Então e as suas pinturas?
— Ah! tem estado tudo em meias tintas, Herr Dos Prados. Não é só a inspiração. Sabe, isto de ter uma tasca em zona de putas dá muito trabalho. Quem me dera poder dedicar-me à pintura a tempo inteiro.
— Se um dia fôr a Lisboa, pergunte por mim na Brazileira. Tenho uma amiga minha que a pode ajudar a mostrar os seus trabalhos.
— Ai sim? E ela pinta bem?
— Olá se pinta! Na zona do Rego ninguém pinta melhor do que a Paula. Abusa um bocado dos castanhos e das gajas com cara de enjoadas, mas tem uma pintura que sai muito bem no Natal e na Páscoa.
Álvaro mandou pôr a despesa na conta e saiu.
Para variar, estava um frio do caraças e chovia. “Hamburgo era uma cidade que não se comia nem com mostarda ou molho de tomate!”, pensou Fernando António Nogueira Pessoa, um heterónimo que Álvaro tinha criado para os climas mais agrestes.
O Fred e o Sandes já deviam estar aconchegados num salão qualquer a discutir as últimas teorias filosóficas. Que ficassem com as paranóias deles. Álvaro pôs-se a caminhar ao sabor das mamas e das mini-saias, do cheiro convulso das ratas mal lavadas. Não lhe apetecia cobrir. Não lhe apetecia descobrir-se (continuava a chover). Nem se conseguia descobrir.
Havia dias em que acordava na cama com o Ricardo Reis. Havia noites em que não lhe saía da cabeça o Bernardo Soares. O pior era quando lhe invadia a intimidade um novo heterónimo, o Soares dos Reis, uma perniciosa mistura dos dois, que não descansou enquanto não arranjou um ‘tacho’ num museu do Porto.
Álvaro nunca conseguiu vender-se aos simples interesses materiais.
“Não, não quero nada, já disse que não quero nada”. Sempre disse isto. E nunca quis nada para si. Nem para si, nem para a Daisy, a sua miúda. A Ofélia recusou-se a fazer-lhe certas coisas e ele pô-la com dono.
“Está bem que o Soares dos Reis é um heterónimo com os seus méritos. Isso ninguém lhe retira. Foi ele que levou para o museu de Vila Velha de Rodin a famosa estátua do ‘Pensador’. Ao fim da primeira semana os putos já a tinham enchido de grafitti, mas a culpa foi da falta de vigilância. Portugal é Portugal, não é? Não dá para deixar originais nas exposições, assim em auto-gestão, sem ninguém a vigiar”.
Era um bom homem, Álvaro dos Prados. Com os seus defeitos, como toda a gente. Nem todos podem ter a arte de conjugar uma mazurka de trás para a frente.
Hamburgo tinha aparecido à má-fila na sua vida, enquanto o sócio de Herr Neuss Ferrari, Doktor Wolf Bat, não se decidia a dar andamento ao negócio do castelo. Mas a firma londrina tinha mandado Jonathan Parker com os documentos e o jovem perdeu-se de amores por uma miúda pálida, abriu uma fábrica de canetas e nunca mais se soube dele pelos lados da Roménia.
Coisas que um homem não pode prever.
Álvaro levantou a gola puída do casaco, abanou as abas do chapéu para sacudir a chuva, afiambrou meia-dúzia de passos mais decididos e desligou-se da realidade com a suavidade dos sonhadores.
Ele sabia que a eternidade lhe pagaria o devido tributo.
Com ou sem mazurkas.
Era o que mais faltava.

domingo, dezembro 17, 2006

Allez, UCP!

Não se trata de reviver o clima das Unidades Colectivas de Produção ou da Reforma Agrária. Não se trata de andar empoleirado em camiões de caixa aberta, a gritar pelas ruas.
Os tempos são outros.
Os tempos que vivemos são os da União Ciclística Poética (UCP), agremiação velocipédica que nasceu muito por força da filantrópica teimosia de um homem. Não um vulgar ser humano, mas um cavalheiro da mais fina estirpe: Bernardo Soares.
“Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos. Um poço fitando o céu”, afirmou o ajudante de guarda-livros na cerimónia ocorrida na Federação Portuguesa de Ciclismo, Ciclo-Turismo, BTT, Passeios de Bicicleta e Actividades Similares (F.P.C.C-T.B.T.T.P.B.A.S).
“Mas apesar de nunca nos realizarmos, há momentos da nossa vida em que as coisas valem a pena”, continuou. Alguém segredou rapidamente que tudo vale a pena se a alma não é pequena. Bernardo Soares nem se apercebeu do facto e prosseguiu o seu discurso de investidura:
“Se alguém é digno dos maiores encómios, esse alguém é o secretário-geral da UCP, o senhor Ricardo Zénite, uma pessoa a quem todos os sócios-fundadores devem muito. Ele abdicou de inúmeras horas de lazer para nos ajudar a construir este sonho chamado União Ciclística Poética. Foi também através dos seus bons ofícios que conseguimos um wild-card para participar no Tour. Escusado será dizer que de outra forma nem seríamos recebidos pela organização da Volta à França. Não é qualquer equipa que faz a sua estreia competitiva em pleno Tour. De resto, vamos mesmo entrar para o Guiness como a primeira equipa do mundo a estrear-se fora do seu país. É óbvio que não podemos esperar muito da nossa primeira participação. Um lugar a meio da tabela, colectivamente, será uma boa classificação. Individualmente, ficarei satisfeito se metermos um poeta nos dez primeiros. Mais do que isto será pura utopia. Não escondo, contudo, o sonho de poder andar de “maillot jaune” um dia ou dois. Seria extremamente importante para o nosso principal patrocinador, a Sociedade Portuguesa de Estivadores. Gostaria de agradecer muito particularmente ao seu actual presidente, senhor Luiz Rabisco Rebelde”.
Bernardo Soares referiu-se ainda às possibilidades da equipa no que respeitava às outras camisolas. A camisola verde, dos Pontos, teria em Mário de Sá-Carneiro um forte candidato, ele que era um verdadeiro sprinter da poesia. Para a montanha, havia que contar com Teixeira de Pascoaes, habituado às serranias de Amarante.
Por especial deferência da organização, a equipa UCP foi autorizada a correr com mais elementos do que os das outras formações. Para além disso, os números dos ciclistas da UCP eram perfeitamente aleatórios. Ou melhor, tinham sido escolhidos por um representante do Governo Civil e por Fernando António, num acordo que misturava legalidade e cabalística.
Dessa forma, Bernardo Soares alinhou com o 69. Porque era “muito bom a fazer piões em derrapagem controlada”. Teixeira de Pascoaes foi para a estrada com o 666, porque gostava muito que lhe chamassem o “Demónio das Montanhas”. Mário de Sá-Carneiro ficou com o 22, porque a sua poesia tinha a elegância de dois cisnes a nadar no lago das palavras. Luiz Vaz de Camões contentou-se com o 1111, porque gostava de todos os conjuntos em que José Cid tinha participado. Bocage fez uma enorme birra quando lhe atribuíram o 1313. Queria alinhar com o 69.
“Não pode ser, Manuel Maria. Repare que é muito importante que seja o chefe-de-fila Bernardo Soares a alinhar com um número iniciático como o 69. Se Deus quiser, este será o primeiro de muitos Tour. Não faltarão ocasiões para alinhar com o 69”, disse Ricardo Zénite, um elemento sobremaneira apaziguador. Uma voz amiga a qualquer hora do dia ou da noite.
Um fax para a organização da Volta à França permitiu esclarecer a situação. Na volta da telecópia apareceu uma autorização para que Manuel Maria alinhasse, a título de excepção, com o número 69-B.
Havia ainda Alexandre O’Neill (777), Jorge de Sousa Braga (888), Manuel António Pina (7-B, por causa do número de vidas dos gatos, animais que muito estimava), Pedro Mexia (1999, não por causa da série televisiva, mas por ser a data de edição do seu livro “ O duplo de Tibério”), Armando Silva Carvalho (1001) e Cesário Verde (10-A, em homenagem à famosa porta do estádio do Sporting, o seu clube de sempre).


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No dia 14 de Julho de 2006, à partida para a 8ª etapa do Tour, o panorama desportivo da UCP era tão desolador que os corredores da Volta à França tinham decidido, em plenário, conceder uma hora de avanço à equipa portuguesa. Até porque a etapa terminaria no mítico Alpe D’Huez, onde Joaquim Agostinho fez levantar bem alto o orgulho lusitano, no final da década de 70.
— A geração de 70 é que era boa. O Jaquim, o Nando Mendes, o Zé Martins. Agora... pff, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato — disse Alexandre O’Neill, que andava às voltinhas com a bicicleta, de um lado para o outro; e tinha trocado o bife com esparguete das 7 da manhã por um queijinho fresco e um pires de doces regionais.
— Tens razão, Alexandre — rematou Bocage.
— Ó Manuel Maria, não lhe dê força. Vamos partir para uma das etapas mais difíceis e o cavalheiro entra na onda dos derrotismos. Não podemos partir para a tirada com este espírito — alertou Bernardo Soares, o mais bem classificado da UCP, nessa altura. Ocupava o 183º posto, a 4 horas, 23 minutos e 7 segundos do “maillot jaune”, Teddy Zerckx. E tinha tomado atalhos em três etapas, sem ninguém ver.
— Olhem, para já, não vou de capacete — avisou Bocage, que considerava os capacetes como “preservativos cranianos sem qualquer utilidade”.
— Ai que castigo, Manuel Maria, todas as manhãs a mesma coisa — irritou-se Bernardo Soares, que andava permanentemente num desassossego, por causa das coisas da equipa. Dizia-se à boca pequena que ele andava a escrever um diário sobre a participação da equipa portuguesa no Tour: “O livro do desassossego”, com prefácio de Lanche Armstrong.
— Ó Manel Maria, desculpe-me que lhe diga, mas o cavalheiro não é mais que os outros. Lá por ter conquistado três “pontos quentes” em que ofereciam jambons e pâtisseries não é motivo para se sentir um ciclista à parte — insistiu Bernardo.
— Ó chefe, você pode até perceber umas coisas de ciclismo, mas de pontos quentes percebo eu. E conquistei muito mais do que três pontos quentes, no decurso da minha vida. Além disso, se a etapa é sempre a subir, para que é o capacete?
— Por amor de Deus, Manuel Maria, é a subir e a descer, a subir e a descer. Só no fim é que é a subir, a subir, a subir. E depois acaba.
Bernardo Soares não o confessava, mas receava particularmente a etapa desse dia. Pela primeira vez a equipa ia partir toda junta, sem mais nenhum ciclista ao lado, o que era assustador. Se já se distraíam imenso no meio do pelotão, sozinhos havia de ser o bom e o bonito.
Já todos tinham assinado o “ponto”, Jorge de Sousa Braga aproveitara para se “fazer ao piso” de uma das meninas do pódio, que ia a passar na zona. Escreveu por baixo da sua assinatura: “Ao menos os teus olhos permanecem verdes todo o ano”. E depois mostrou-lhe a frase e traduziu para francês, com sotaque do Porto. O que se podia esperar de um poeta que já fizera sair pombos pela braguilha, numa sessão de declamação?
Com grande dificuldade, Bernardo Soares lá conseguiu levar a equipa para a linha de meta à hora certa. Quer dizer, uma hora antes da partida do resto do pelotão. A assistência até pensava que aqueles ciclistas com camisola roxa, rosa e verde-alface e calções amarelo-canário (escolha de Armando Silva Carvalho na brincadeira, mas os outros tinham achado ‘very cool’) ainda faziam parte da caravana publicitária ou andavam a distribuir brindes.
Ao tiro de partida, lá se volatilizaram em boa velocidade, numa manifestação pura de ostentação. Mal deixaram de ter espectadores no percurso reduziram a marcha. Pedro Mexia, que era o “benjamim” da equipa, ainda se atreveu a perguntar:
— Mas não temos hipótese de fazer umas flores nesta etapa? Afinal, partimos com uma hora de avanço...
Seguiu-se um coro de gargalhadas. Cesário Verde riu-se tanto que chocou contra Mário de Sá-Carneiro e caíram os dois.
— Ó Pedro, deixe-me que o esclareça: a montanha tem dois lados. Nós vamos passar pelo lado que sobe. Se não fossem as repescagens diárias por mérito cultural já nem havia equipa — adiantou Manuel António Pina, que tinha de resistir continuamente ao impulso de encostar a bicicleta e ficar a fazer festas ao gatos que mansamente se espreguiçavam na prazenteira “campagne” dos irredutíveis gauleses.
— Vamos chegar lá acima todos mortos, se é que chegamos — disse, quase estoirado de riso, Cesário Verde, que já tinha montado na bicicleta outra vez e piscava o olho a Mário de Sá-Carneiro, a quem os colegas tinham alcunhado de “Quasi”. Quasi tinha vencido a meta volante, quasi não tinha caído, quasi ficava nos primeiros da geral. Mário desculpava-se com o tempo algo chuvoso em certas etapas: “Um pouco mais de sol eu era brasa, um pouco mais de azul eu era além”.
— Olhem, por acaso o Tom Simpson morreu a subir o Mont Ventoux. Se algum de nós cair para o lado em plena subida eu dou-lhe a extrema-unção — disse Pina, que não perdeu balanço e declamou: “Morrer não é motivo de orgulho/mas estavas cansado de mais para te justificares/Ainda por cima no mês de Julho/ com as férias marcadas, ausentes os familiares”.
— Eu acho que não vamos cair. Pelo menos na classificação é impossível cair mais — lançou Bocage.
— Boa, Manel Maria! Escreve já essa, para não te esqueceres. Podes meter no teu livro de anedotas que vai sair no Natal — sugeriu Jorge de Sousa Braga.
Bernardo Soares teve de se impor. Ainda só estavam a pedalar há dez minutos e já queriam parar para escrever coisas.
— Ninguém pára para escrever nada. Nem que tenha na cabeça o poema mais bonito do mundo. Isto agora é o Tour de France e estamos aqui para defender o bom nome de Portugal e dos nossos patrocinadores. Há um mínimo!
Vendo o facies irado de Bernardo Soares, os ciclistas da UCP lá perceberam que era conveniente meter umas férias repartidas na galhofa habitual, não fosse dar uma coisa ao Bernardo. Afinal, o homem até se tinha esforçado. Quase todos os poetas andavam no ciclismo pelo convívio, queriam era literatura, copos e gajas. Curtir umas paisagens, fugir da família, conquistar a imortalidade do Olimpo a desbravar quilómetros.
O Bernardo não era assim. Metiam-se-lhe umas coisas na cabeça e depois era o Diabo para lhe saírem da caixa dos pirolitos. Por vezes, temiam pela sua sanidade mental. Porque o Bernardo dizia coisas do estilo: “Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela. Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual”.
É caso para uma pessoa se preocupar. Está bem que o Tour é uma prova muito dura, mas a malta lá acaba por chegar à meta. E depois há massagens, jacuzzi, os DVD nos quartos do hotel, umas ostras com champanhe, mordomias que os outros ciclistas não têm. Mas o Bernardo possuía uma zona muito negra dentro da cabeça dele.
“Quando julgamos que vivemos, estamos mortos. Vamos viver quando estamos moribundos”.
Estão a ver? Não eram coisas de que ele falasse durante as etapas, mas havia um aspecto perturbador no Bernardo. O Bocage também tinha umas telhas assim, mas em diferente:
“Meia-noite seria; eu passeando/No meu palmar chorava o meu destino/eis que ao som de um gemido repentino/Olho, e vejo uma sombra no ar girando”. E depois põe-se a perguntar “Quem és tu, Guirá? Quem és, ó Lémure malino?”. O Manuel Maria é danado para a borga, mas também tem um lado negro, como o Bernardo. E faz sempre uns poemas com uns nomes de gajas que... se faz favor! Não lembram nem ao Menino Jesus: Gertrúria, Elmira, Marília, Dido, Jónia, Ursulina, Nise.

Apesar do Bernardo ser o mais bem classificado da UCP no Tour, o Mário era incontestavelmente o melhor sprinter e rolador. Também era mais novo.
Por isso, ganhou logo a primeira meta volante, com 20 km de etapa corridos. E chegou lá com mais de um minuto de avanço em relação ao resto da malta, só pelo gozo.
Quando o pessoal passou, em pelotão, velocidade mais do que moderada, estava ele apeado, a “bater um couro” a uma miúda chamada Salomé: “Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua, alastra-se pra mim num espasmo de segredo...”.
O Pedro Mexia não foi de modas e atirou-lhe: “Ó Mário, olha que pode chegar o pai dela de um momento para o outro. Além disso, a miúda tem bigode. Vai-se a ver é uma portuguesa nascida em França”.
— Não és tu que dizes “a mais delicada colecção: os seres amados”? Então vai chatear um Pinguim de Magalhães!
Perto das duas horas de prova, um primeiro quarteto de favoritos alcançou o pelotão compacto da UCP. Eram eles os belgas Teddy Zerckx e Lucien Van Ímpeto, e os espanhóis Luís Ócalhas e Miguel InDurex.
— Ça va, les UCP? — sorriu Teddy Zerckx, que tinha a alcunha de “Canibal” por devorar os prémios todos e não deixar nada para ninguém.
— Ça va e não voltes. A gente vê-se na chegada. Porque é que demoraste tanto a apanhar-nos? Hoje não estás em forma, pois não? — provocou O’Neill.
Bernardo Soares repreendeu-o. Não houve tampo para mais. Aproximava-se uma descida vertiginosa, quando nada o fazia prever, depois de uma pequena elevação.
Cesário Verde era o melhor descedor do grupo português e conseguiu ganhar perto de dois minutos. Parou ao pé de um “bistrot”, mandou vir um Campari e pôs-se a recitar um dos seus poemas a um trio de reformados que estava a jogar à petanca no quintal:
“No campo; eu acho nele a musa que me anima: /a claridade, a robustez, a acção. Esta manhã, saí com minha prima/ Em quem eu noto a mais sincera estima/E a mais completa e séria educação”.
Vazou o Campari goelas abaixo e montou na bicicleta, agarrando de raspão a passagem, agora veloz, por via da descida, dos seus camaradas de equipa.
— Ó Cesário, o senhor bebeu alguma coisa no “bistrot”, quase de certeza... o que bebeu?
— Bernardo, acalme-se. Está com medo que eu ganhe a etapa e tenha de ir ao controlo?
E depois, la campagne c’est la campagne. Independentemente das montanhas a subir. O ar puro, a Natureza em todo o seu esplendor. É sempre um prazer.
Não é nada um prazer. Ainda agora começou a subida final e já estamos todos quebrados. Já não há ninguém atrás dos ciclistas da UCP. A nossa relação pessoal com os condutores do carro-vassoura é tão intensa que o Pedro Mexia até convidou um deles para padrinho de casamento, regado a Licor Beirão, na Lousã. O moço assolapou-se de paixões pela Chasey Lane (uma actriz de filmes de acção de série B) e diz que vai ser em Setembro, se ela não fugir com outro, até lá.
“Não podes tocar na porta verde/sem que fiques com as mãos verdes./Pouco te interessam o segredo das portas/e as adivinhações verdes,/mas a tinta fresca do mundo/faz-se em breve da cor da tua pele”.
Este poema do Pedro chama-se “Não tocar”, mas esteve para se chamar “Behind the green door”. Foi inicialmente dedicado a Marilyn Chambers, uma sua amiga dos tempos de liceu. Depois acabou por o enviar, num postal banal dos correios, para a Chasey, que se deixou cativar pelo espírito romântico do poeta. Depois do casal Lanche Armstrong/Cherry Crawl, Pedro Mexia/Chasey Lane eram a dupla mais perseguida pelos fotógrafos do Tour.
O primeiro elemento da UCP a chegar a L’Alpe D’Huez foi Teixeira de Pascoaes, com cinco minutos de atraso em relação ao último ciclista não-UCP.
Mirou e remirou a paisagem, deu alguns autógrafos e proferiu, em voz alta e decisiva:
— Isto aqui é um bocado parecido com o Marão.
Apareceu-lhe pelas costas (sem consequências) um jornalista da France 2. E disparou:
— Então, gosta do Tour?
E o “Demónio das Montanhas”, já abraçado pelo verdadeiro Diabo, o adepto suíço que não falha um Tour, respondeu, de rosto grave e honesto: “Eu amo a serra e o mar/Amo o bruto penedo, a branca nuvem,/As ondas, em seu líquido ansiar/Ou térrea densidade do seu êxtase...”.
— Je comprends. Mais... alors e o Tour?
— “Diante de mim, ressurge e se ilumina/ O sol turbado, escuro e sonolento./Onde ponho os meus pés,floresce a terra/brilha a luz,onde ponho o pensamento”.
O repórter francês encolheu os ombros e deixou Teixeira de Pascoaes a contemplar a Natureza. Os portugueses eram seres estranhos. Talvez não fosse grande ideia deixarem-nos participar no Tour de qualquer maneira, atravancando de pitorescos uma prova digna e respeitada em todo o mundo.

Pouco depois (volvidos 21 minutos e 15 segundos) chegou Luiz Vaz. Sem qualquer espírito trocista, Teixeira deu uma lata de Coca-cola a Camões e comentou:
— Pensei que chegasses um pouco antes.
Camões, exausto das últimas rampas, humilhado pelos aplausos que não paravam enquanto ele trepava aos ésses (piedade, nada mais que piedade, suprema humilhação, que tinham aqueles aplausos misericordiosos a ver com a admiração?), não compreendeu a crítica construtiva de Pascoaes e disparou, com maus modos, recusando a Coca-Cola:
“O esquivo desamor com que me tratas/converte em piedade, se não queres/Que cresça o meu querer e o teu desgosto”.
Hora e meia depois, chegaram os últimos ciclistas da UCP, nitidamente mais folgados.Bocage, O’Neill e Cesário Verde não pareciam nada cansados.
— Metemos o nosso passo. Amanhã há mais — disse O’Neill.
Finalmente, podia-se proceder à entrega do último prémio do dia. O troféu da combatividade. Vencedor: Bocage. Tinha andado à porrada com três ciclistas, dois homens que montavam as barreiras na meta, dois gajos da caravana publicitária que eram casados com mulheres boas e um empregado de café desempregado que tinha deixado escapar um comentário ao penteado do poeta.
Na tenda da equipa belga, Teddy Zerckx fazia jus à alcunha de “Canibal” e deglutia descansadamente um peito de uma das meninas do pódio, junto do seu amigo Peter Greenaway.
— Ó Teddy, eles não vão dar pela falta da miúda, no pódio de amanhã? — inquiriu o cineasta.
— Qual quê!?! Pensam que ela está com o poeta português.
— Qual deles?
— O mais ordinário de todos, nom de Dieu!
O mais ordinário de todos, nom de Dieu, era, obviamente, Bocage. Que tinha levado consigo outra menina do pódio, a que lhe dera os beijinhos da praxe na altura da entrega do prémio da combatividade.
— Venha daí dar uma volta comigo. Já estou farto desta Volta à França. Prefiro dar-lhe a volta:
“Não sou vil delator, vil assassino,/Ímpio, cruel, sacrílego, blasfemo;/Um Deus adoro, a eternidade temo,/Conheço que há vontade, e não destino/(...) Mas folgo e canto/ e durmo nos teus braços”.
A menina do pódio suspirou e bateu as pestanas na direcção do olhar de gavião do vate ordinarão, do génio mais obsceno a Oeste de Pecos. O casal espontâneo refugiou-se atrás de um camião das equipas a sério e Bocage fez o que tinha a fazer, sem remorsos ou preconceitos.
Só então, concluído o trabalhinho, reparou em Jorge de Sousa Braga, parado, mais imóvel do que um rochedo sonolento, a olhar em frente.
— O que é isso, ó Jorge? Adormeceste?
— Nem por isso. “Sempre me intrigaram esses lagos de montanha alcandorados nas nuvens. É como se fossem gigantescas taças de orvalho que as montanhas erguessem para brindar a cada novo dia”.
Bernardo Soares andava verdadeiramente desesperado, a tentar juntar a equipa. Era importante sob todos os pontos de vista. Havia necessidade de fazer fotos para recordação, para futuro currículo, para ilustrar uma reportagem de fundo para o “L’Équipe”, que mais tarde seria publicada sob o título: “UCP, a equipa portuguesa que não sabe pedalar”.
Quanto mais se esforçava, mais parecia que os ciclistas se dispersavam, como aviões de uma esquadrilha acrobática: juntavam-se, afastavam-se, faziam cabriolas e desapareciam nos céus.
Agora tinha desaparecido o Cesário Verde, a contas com uma serenata improvisada a uma moçoila de Paris que tirava férias em Julho para vender tremoços no Tour:
“Milady, é perigoso contemplá-la/Quando passa aromática e normal/Com seu tipo tão nobre e tão de sala/Com seus gestos de neve e de metal”.
— Ó Monsieur, ou me compra os tremoços ou desampara a loja!
“Bah! Está verde”, pensou Cesário.
Correu. Toda a gente à sua espera. A UCP formada, sorrisos ao alto, no alto dos Alpes. O fotógrafo do “L’Équipe” a disparar incessantemente. E o Bernardo para o redactor:
“Quando é que sai? É na revista dos fins-de-semana? Depois avisem. Ou mandem uma para Lisboa. É que se paga mais pelo jornal, mas a revista não chega. Porquê? Já desisti de perceber. Até parece que Paris é muito longe de Lisboa. Vejam lá se dizem bem da malta. A equipa está agora a começar. Somos amadores, mas gostamos muito de ciclismo. A literatura é uma paixão, mas o ciclismo já faz parte integrante das nossas vidas. Quer dizer, as nossas vidas têm agora duas dimensões”.

...a luxúria japonesa de ter evidentemente duas dimensões apenas...
(“Livro do dessassossego” da 4ª edição da Assírio e Alvim, algures entre as 534 páginas)

A luxúria das montanhas mágicas, com os heróis a subir a direito, que o Olimpo é sempre em frente. Os heróis dos músculos retesados e corações generosos. Os heróis que são tão heróis como os heróis da pluma, que me enchem o coração de musculações afectivas.


Foi você que pediu um Bernardo Soares?

Von Grazen, 18/7/2004 05h15m

Apoio: “Make your own fun” (Gary Foster) e “Young lions and old tigers” (David Brubeck). Duas passagens cada.

domingo, dezembro 10, 2006

Essa coisa das pinturas abstractas

Paul andava a passear na praia. Dominique, uma ave particularmente dócil, seguia Paul a curta distância, tentando meter conversa. O problema era só este: apesar da hora matinal, Paul já tinha um grãozinho na asa e não estava com paciência para dar trela a Dominique. Não obstante a “cadela” que lhe enfeitava o fígado de ressacas e o cérebro de dúvidas existenciais, ainda conseguia prestar atenção a alguns pormenores do planeta.
Quando Dominique o ultrapassou e se pôs a dar saltinhos à volta de uma garrafa de absinto, Paul parou. Olhou para a garrafa, curioso. Primeiro, passou-lhe a mão por cima, ao de leve, tirando a areia maior. Depois esfregou com vigor e pressentiu que algo estava a acontecer.
A rolha saltou com a energia do foguetão de Meliès. Um sujeitinho pequeno, tipo gnomo, amarrotado, amesendou-se na areia molhada, levou com o último grito da nova vaga de espumas e começou a insuflar-se de vida. Como se tivesse podido abandonar as cavernas do Inferno para se transformar num diplomata de olhos verdes e doutoramento em Harvard.
— Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?
— Ça alors...
— Os meus respeitos, cavalheiro. Saberá por acaso informar-me qual a graça deste pedaço de areia assaz atraente?
— Pardon?
— Como é que se chama esta merda, pá? Falo chinês, caraças?!? Catano p’rò franciú!
— Isto são as Marquesas.
Fernando olhou em volta e não viu marquesas absolutamente nenhumas.Pensou que o indígena de mau aspecto tinha apanhado sol a mais. De resto, o hálito não era nada de famoso. Optou por um tratamento circunstancial e suave. Afinal de contas, estava a jogar fora e nunca se sabia onde podia ir parar se tivesse de voltar para dentro da garrafa.
— Não é para te contrariar, mas onde é que está a nobreza toda?
— Qual nobreza?
— As marquesas...
— Isto são as Ilhas Marquesas. Fatu-Iwa.
Foi nessa altura que Fernando percebeu tudo. O caso era extremamente grave. O melhor era seguir com a corrente.
— Obrigado. Para ti também.
Como estava a ficar com fome, não perdeu mais tempo e perguntou:
— Não há por aqui um McDonald’s ou Pizza Hut?

Decididamente, o estranho homenzinho de chapéu preto e óculos redondos era um caso mental muito particular. Paul optou por fazer de conta que o Universo era perfeitamente equilibrado. Resolveu regressar para junto das suas telas. Fernando pôs-se a segui-lo, olhando analiticamente para Dominique.
— Olha lá, a passarinha é tua ou é vadia?
Dominique não tardou em bater asas e afastar-se, desconfiada com o olhar do poeta que tinha a capacidade de fugir de dentro das garrafas e fazer viagens sem sair do mesmo sítio. Dominique andava a ler Robert Bréchon.
Fernando pensou que era pena. O passarito tinha um ar tenrinho. Instintivamente, meteu a mão ao bolso. Fósforos, viste-los tu? Nunca havia nada! Nem sequer o canivete suíço que tinha tirado da arca dos heterónimos.
O sol começava a incomodar Fernando. Tirou o lenço do bolso e improvisou uma singela cobertura para a cabeça, com quatro pequenos nós nas pontas. Usou o chapéu para se abanar sem mais tardanças.
— Isto aqui faz um sol do caraças. É sempre assim cá nas Marquesas?
— Mais ou menos. É bom para pintar. É tudo uma questão de luz e momento.
Dominique sobrevoou Fernando uma primeira vez, a tirar os azimutes. Foi buscar um coco pequeno e deixou cair sobre a cabeça do poeta, que se desviou uma fracção de segundo antes do marisco desabar sobre uma pedra pontiaguda.
— Eh! pá, isto é que foi sorte. Só falta a palhinha.
Já com o estômago mais reconfortadinho com o sumo de coco, Fernando chegou bem disposto à zona onde Paul tinha deixado as suas telas, com vista para o mar e de costas para as palmeiras.
— Bolas, que as gajas daqui são bué de feias.Não deves ter pilim para modelos de jeito, está visto...
— O cavalheiro não percebe nada de pintura...
— Isto é alguma coisa?!? Diz lá, sinceramente. Pensas que eu sou algum otário? Apanhaste sol, pronto. Confessa. Cada um tem os seus azares. Se calhar és bom sapateiro, ou correeiro. Cada um é para o que nasce. Já experimentaste o artesanato?
— Qual é o problema da pintura ?
Fernando pensou que havia saias no assunto e resolveu moderar-se. Não se deve brincar com o coração de um homem, mesmo que seja um louco, desterrado numa ilha sem nada.
— Alguma destas é a tua namorada ?
— É a da esquerda. Chama-se Pahura.

Pronto. O homem era mesmo louco. E a namorada devia ter família em Itália. Mesmo assim não lembra ao Menino Jesus baptizar alguém com o nome de “Medo”. Como te chamas? Maria do Mar. E tu? Maria do Medo.
— Então e a da direita?
— É uma miúda que costuma ir até ao templo de Borobodur.
Olha que pena, pensou Fernando. Se não tivesse falhado o autocarro das onze e meia ainda podia ter ido visitar o templo de Borobodur.
— Costumas receber os guaches pelo correio, não?
— Meu caro senhor, veja como fala. Isto é “oil on canvas”.
— É aqui perto?
Paul encolheu os ombros. O mundo ainda havia de adorar a arte de Gauguin. Mas era duro ser artista. O maluco do Vicente Vemgrogue talbém lhe tinha dado cabo da cabeça com os girassóis, apesar de ser um talento emergente.
Quando Paul deu por ele, Fernando tinha virado uma tela ao contrário.
— Não gostas mais assim ?
— Meu caro senhor, deixe a tela como está. Essa tela é para ser vista da direita para a esquerda. Chama-se “Where do we come from? What are we ? Where are we going?”.
— Não vais escrever o título na tela, pois não? É que podes ficar sem tintas... olha lá, explica lá o que é esta confusão toda de pessoal...
— Isto não se explica. O que interessa é capturar o mundo interior da fantasia e do sonho. Os impressionistas olham só para o que está ao alcance da vista. Não se preocupam com os misteriosos centros do pensamento.
— Então tu não és impressionista?
— Claro que não. Eu sou um pós-impressionista. Aposto no valor do símbolo.
— Pronto, está bem. Todos têm direito. Mas olha que estas cores me continuam a fazer muita impressão.
— São as cores do Tahiti.
— Ai são? Mas o meu gel de banho não é dessas cores. Deve ser do monói...
— O cavalheiro é mesmo ignorante.
— Ignorante és tu. Conheces Almada Negreiros? Quem te dera a ti chegar-me aos calcanhares. Eu vou ficar na história da Literatura lisboeta. E tu? Quando muito és o melhor pintor desta rua. Olha, nem isso, que esta porcaria de terra nem sequer tem ruas.
— Meu caro senhor, eu vivi no Brasil, vivi na Bretanha e escolhi morrer no Tahiti. Eu traço o meu destino.
— Olha, eu vivi em muito mais sítios. E nem sabes a sorte que tens. Eu vejo-me aflito para sair da garrafa quando está bom tempo. As mais das vezes a malta só esfrega na garrafa em pleno Inverno.

Era verdade. A alma de Fernando Ortónimo estava cheia de fel. Uma dívida de jogo a um génio da lâmpada obrigara-o a entregar-se aos limites exíguos de uma garrafa, onde nem sequer havia espaço para um ratinho da Índia, quanto mais para um heterónimo.
E se Fernando Ortónimo tinha saudades dos heterónimos! A bela vida de peregrinar os lupanares da imaginação, tomar uma bebida nos confins da memória, escalar as aventuras de uma boa polémica literária, arranhar sem pruridos as consciências mais puritanas do Grémio Literário.
Deixou Paul entregue às suas cogitações e voltou ao ponto de partida. O sol estava mais fraco e uma nuvem carregada de saudades choveu sobre ele um murmúrio de carícias. Fernando sentiu a fraternidade a imigrar-lhe pelos poros adentro.
Deve ter-se enganado no caminho, porque foi parar a um restaurante com esplanada: “Why, Kiki? Bitch!”. Mas os autóctones conheciam-no pela Tasca do Ti Vicente. Havia jarrões com girassóis por todos os lados. O dono, um tipo ruivo com ar rústico, também gostava de pintar.
— Prove-me esta saladinha de polvo e depois diga-me coisas...
Fernando teve de dar o braço a torcer. A saladinha estava detrás da orelha. Já o mesmo não se podia dizer das pinturas do Ti Vicente.
— Pelos vistos, também gosta de pintar...
— Oh! Isso é só para entreter. Nem sequer vendo as telas. O meu irmão é que gosta de tratar desses assuntos. Eu prefiro ocupar-me aqui dos meus petiscos.
— Pode transmitir os meus cumprimentos ao chefe.
— Isto é tudo cozinhado por mim.
— Os meus parabéns.
— Sabe, ainda pensei num self-service, mas esta malta daqui não tem paciência para estar nas bichas. Se eu montasse um self-service, eles fugiam todos para os restaurantes de frutos tropicais, batidos, essas coisas. As miúdas aqui andam todas em topless, por isso é muito importante manter a linha.
— E então virou-se para os petiscos...
— Foi o melhor que fiz. Especializei-me na saladinha de polvo. O segredo é o vinagre. Ainda noutro dia veio cá um grupo de amigos franceses e ficaram a chorar por mais.
— Vêm cá muitos franceses?
— Nem por isso. Estes são uns pintores amigos. É a troupe do Monet e do fugitivo.
— Quem ? Nunca ouvi falar.
— É uma reinação que a malta tem. O Monet acaba por pagar as contas, que o amigo dele foge sempre na hora do digestivo e deixa-o agarrado à dolorosa. Está a ver aquele quadro grande com nenúfares? Foi ele que deixou. Não gosta dele. Diz que só o pintou porque a tinta verde e a lilás estavam em promoção.
— Por acaso gosto.
— Eu sou mais dos girassóis. Mas não tenho nada contra os nenúfares.
— Pois claro. Cada um é como cada qual.
— Ora exactamente. Pinta e deixa pintar.
Mais um doce da avozinha, mais uma baba de camelo, mais um salpicão caseiro oriundo de Saint-Vincent-de-les-Oreilles, mais uma pinga especial de coco torrado, mais um queijinho da serra, umas bolachinhas com doce de goiaba, uma bica pingada, um bagacito, quando deram por eles a tarde já se tinha posto na alheta.
É assim a vida dos pobres. Fernando Ortónimo despediu-se de abraço do Ti Vicente, arrotou alarvemente, meteu os calcantes à estrada e fez-se à praia sem mais delongas.
Demorou um bocadichinho a descobrir a garrafa, sentou-se ao pé da rebentação a olhar a lua e até fez uma festa na Dominique, que veio poisar ao seu lado.
Depois, com todos os vagares, meteu uma perna dentro da botelha, meteu outra, esticou-se todo e afunilou-se o melhor que soube. Ajeitou-se uma última vez, espreitou cá para fora pelo vidro fosco, suspirou e disse:
— Jarbas, prego a fundo para a “Twilight Zone”. Porra, que se come bem no Tahiti...

Von Grazen, 12/3/2003, 05h29m

domingo, dezembro 03, 2006

Molha a tua pena no meu mojito

Amanheceu. Fernando não tinha dormido. Passara a noite no campo, como Alberto Caeiro. Ainda cheirava a ovelha. Sentado à mesa da “Brasileira”, oferecia a sua palidez suavemente abigodada aos raios tímidos e frescos da alvorada.
O Chiado acordara sem grande vontade de trabalhar. Alguns pombos mais audazes tinham acostado na estátua de Luiz Vaz. O vate ignorava-os com snobismo olímpico. Ao fundo, o Tejo bocejava de portugalidade indiferente.
Fernando olhava para o branco imaculado da folha de papel e pensava para com os seus botões: “Quem sou eu, concretamente, agora? Está-me a apetecer escrever, mas não sei quem sou. Ora, é absolutamente impossível começar a escrever sem saber quem sou. Pelo menos antes das dez da manhã. Já não tenho vida para passar a noite no campo”.
Um jornaleiro conhecido cruzou o espaço territorial do multipoeta e disparou de forma sociável:
— Ora então muito bons dias, sôr Fernando. A trabalhar para o bronze?
Fernando devolveu os bons dias de uma forma o mais neutral possível. Ainda não tinha decidido que heterónimo vestir para o resto do dia. E sabe-se como é importante colocar a voz no princípio da jornada. O problema tinha tanto mais acuidade quanto se sabe o que Fernando sofria por não possuir uma voz própria, mas uma multiplicidade de dialectos interiores que o assaltavam sem respeito.
Uma senhora bem apessoada sentou-se de perna cruzada na mesa do lado. Pediu uma meia de leite ao Lopes. O Lopes regressou cinco minutos depois, com uma meia de leite, uma discreta erecção de homenagem e 80 gramas de neve cáspica uniformemente distribuída pelos ombros.
Fernando já rabiscara clandestinamente três ou quatro versos libertinos: “Ela sentou-se de perna cruzada/gaivota do Tejo de poiso fortuito/lançou-me um olhar de névoa e promessas/pedi um bagaço e suspirei”.
A meio da manhã, a senhora quebrou o gelo e apresentou-se: Jéssica Coelho, muito prazer. Tal era a sua graça. Fernando coçou a cabeça imaginariamente e acabou por responder ao acaso: Alexander Search, encantado. Descobriu-se por breves momentos, suspendeu por segundos o traseiro no espaço, persignou o olhar numa rasante à calçada portuguesa.
Estavam apresentados. Nessa altura, Fernando não sabia que Jéssica Coelho não passava de um dos muitos heterónimos de Ofélia, a versão libidinosa, para passear na Baixa e provocar os homens de uma Lisboa puritana e madraçamente dada a ignorar os prazeres da carne.
O poeta continuou imerso nas suas cogitações e decidiu que era melhor traduzir Jéssica para inglês, de modo a emparelhar sem medos com Alexander Search. Jessica Rabbit soava-lhe bem. E pensou: “Não é nada má. Só foi traçada assim”.
O sol interessou-se por Fernando e desceu sobre Lisboa de forma mais convidativa, a chamar turistas e fazer jus à fama mediterrânica da cidade. Fernando meteu a mão na algibeira e de lá tirou uma carta de um admirador americano, Ernest Hemingway.
“My dear fellow: este que te escreve grama à brava os teus desvarios literários. However, faz-te falta sol como deve ser e dois lotes de requebrado mulato. Porque não vens passar uma quinzena comigo, a Havana? Não te preocupes com os cobres. És meu convidado. Sobe-te para um vapor confortável e faz-te ao mar. Espero-te para trocar ideias e beber uns copos. Do teu: Ernesto”.
A ideia não era má. Mas Fernando tinha azar às saídas. Pelo que ouvira dizer, Lisboa não se podia comparar a Paris, Londres ou Nova Iorque. Mas era Lisboa, com mil diabos!
Experimentara uma ida a Portalegre, por causa de uma gráfica, mas as coisas tinham dado para o torto. A simples ideia de sair fazia-lhe confusão. Por outro lado, a viagem marítima poderia inspirar-lhe, quem sabe, uma ode. Dar-lhe a conhecer novos heterónimos. Por exemplo: Max Sailor (autor do poema “Gaivotas enterram Domingos Bomtempo”), Freddy Seagul (famoso pelo seu ensaio “Fernão Capelo Gaivota, estéticas revolucionárias na aerodinâmica das aves”) ou Joseph Konrádio (vencedor do prémio literário La Coupole, com o conto “Corações nas termas”).
O convite ficou a germinar-lhe pelos neurónios e não o deixou mais sossegar. Ofélia desaparecera sem deixar rasto, apesar de a atmosfera de Lisboa ainda cheirar a meia de leite. Pagou os 23 bagaços, o pires de amendoins, endireitou o laço e fez-se à estrada.
Uma semana depois estava a bordo do transatlântico “Durban”, navio imponente, de cores claras, muitas chaminés e alguma poesia à solta. A viagem correu tão bem quanto seria de esperar. O único percalço ocorreu já na parte final. O proprietário do camarote “Delfim”, também escritor (de seu nome Alexandre Runas) propôs-lhe um duelo de heterónimos e Fernando caiu na asneira de aceder. O Chevalier não durou dez segundos às mãos de D’Artagnan. Mas um homem só tem uma palavra. No dia seguinte, Runas recebia como pagamento “O livro do desassossego”.
Fernando chegou a Havana num dia quente. Depois descobriu que era mesmo assim. À sua espera estava um miúdo de ar sorridente, que afirmava ser amigo do “Papa”. Estranhou. As relações entre o Vaticano e as crianças pareceram-lhe muito dúbias e forçadas. Só mais tarde compreendeu que o “Papa” era o amigo Ernesto. Uma espécie de Ti Ernesto em versão habanera.
— A pesca para mim é uma religião — disse-lhe Hemingway num fim de tarde.
Estava explicado o epíteto de “Papa”.
— Vais ficar aqui num quarto do meu hotel. No quinto piso, para ficares perto de mim e podermos trocar ideias literárias quando quiseres. Também tenho uma quinta, com quatro cães e 57 gatos.
Nessa noite Fernando não dormiu. Passou horas a fazer cálculos, tentando encontrar o significado cabalístico de uma série de operações aritméticas que envolviam 4 e 57. Só de manhã percebeu que se tinha esquecido de juntar o 5 (quinto piso do hotel).
— Tens a lua em Vénus, mas ainda não é bem definitivo, porque me esqueci do 5 — disse ele para o Ti Ernesto, quando se encontraram para tomar o pequeno-almoço.
Depois foram até ao bar “La Floridita”, onde o Ti Ernesto era muito conhecido e costumava ler o jornal. Fernando aproveitou para criar mais meia-dúzia de heterónimos com nomes de “cocktails”: Alberto Cuba-Livre, Bernardo Blue-Coração, Álvaro Screwdriver, Alexandre G. Tónico.
Hemingway despachou 12 daikiris com carácter de urgência.
— Olha lá, tu deves estar habituado a estas coisas, mas quanto a mim devias ter cuidado com os emborcanços. Olha que isso não é bagaço. O que vale é que eu viajo sempre com as minhas garrafinhas do dito, como a Angelina Antas Ruiz.
— Quem?
— É uma escritora da Pasteleira. Não leste “Os putos prateados”?
— Não, ainda não cheguei aos escritores portugueses e já tenho 8 mil volumes na minha biblioteca.
— Isso é muito livro.
— Pois. Mas sabes que na pesca se passa muito tempo sem fazer nada.
— Então e na caça ?
— Na caça só leio à noite, ao pé da fogueira.
Fazia sentido. De sentido em sentido, Fernando converteu-se aos hábitos alcoólicos de Hemingway e em menos de uma semana já era conhecido como “o amigo espanhol” do Ti Ernesto.
Espantou-se com tantas fotografias do Ti Ernesto nas paredes do “La Floridita”, ao lado de gente como Errol Flynn, Spencer Tracy, Gary Cooper.
— Quem são estes à tua beira? São os teus heterónimos?
— É rapaziada do cinema, que também gosta de uma boa pândega.
— As caras deles não me são estranhas. Tens a certeza de que não tens aqui nenhum heterónimo?
— Most sure, bloody hell ! Já não tenho heterónimos. Bastards, não pagavam as quotas, só queriam andar comigo na borga.
— Os meus heterónimos não pagam quotas. Basta preencher a ficha de inscrição.
— Vamos lá até à “Bodeguita del Medio”, que me está a apetecer um mojito...
— Estou a pensar numa coisa: se calhar não era má ideia começar a partir os bagaços com rum, quando chegar a Lisboa...
E a vida era assim em Havana. Hotel, “Floridita”, “Bodeguita del Medio”, uns passeios de barco (“Ai aquilo é que é o merlim azul? Também há de outras cores ?”), umas cenas de caça (“não quero, Ernesto, não quero, não insistas. O coice da arma ainda me dava cabo da Maria José”), umas voltas de Chevy (“os carros daqui dão para meter a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian e ainda sobra espaço para gajas”), duas de conversa sobre literatura.
— E pronto. Escrevi “O Velho e o Mar”, baseado numa história real com o velho Gregório.
— Tens a certeza que o velho Gregório passou mesmo por isso?
— Ó Fernando (hoje és o Fernando, não és? Diz lá, pá, sinceramente, sabes que eu vou com todos), palavra de honra! Claro, se fores perguntar aos meus biógrafos, claro que eles não confessam, só para contrariar.
Não obstante a suprema resistência aos vapores etílicos, de 15 em 15 dias Ti Ernesto e Fernandinho apanhavam uma bebedeira literária a sério, de entrar para os anais do Nobel, do Pulitzer e de mais uma dezena de prémios literários. Geralmente, era o Ti Ernesto que carregava o Fernandinho até ao hotel.
— E fica sabendo que sou muito melhor escritor que tu. És um palhaço que passa a vida a fazer mal aos animais, a caçar e a pescar. Tu nem sequer tens asterónimos! E tenho quase a certeza que comemos um dos teus gatos lá na quinta, a semana passada. Larga-me, quero chamar ao Gregório...
— Fernando, continuas assim e eu meto-te no primeiro barco de volta a Madrid. Sabes que sou um gajo porreiro, mas tudo tem limites.
No dia seguinte, Fernando olhava para Hemingway com um ar envergonhado e dizia:
— Ernesto, estiveram a contar-me que saíste ontem com o Caeiro e que ele se portou mal. Queria pedir-te desculpa por ele. É um boçal, passa a vida metido com as ovelhas, só lê Teixeira de Pascoaes, sabes como é...
— Never mind. Vou-te dizer uma coisa. Pelo preço de um quarto no hotel, fiquei a conhecer uma molhada de amigos.
Dias mais tarde, Fernando embarcou de volta para Lisboa. Coincidência das coincidências, o paquete “Massagem” acolhia no camarote “Orgias” o escritor Alexandre Runas. Desta vez, Fernando não arriscou. Gastou três dias a estudar os movimentos de Porthos, Athos e Aramis e depois lançou os seus heterónimos ao ataque, à saída da sala de ténis de mesa. Não recuperou “O livro do desassossego”, mas pelo menos vingou-se.
No dia seguinte foi interpelado por Runas, numa cadeira ao lado da piscina:
— Ó amigo, por acaso não viu os meus mosqueteiros?
— Olhe, atiraram-se ontem ao oceano, depois do folhetim da Emissora Nacional...
— Não me diga...
— Ah! pois. Dói, não dói ?
O resto da viagem decorreu sem notas dignas de registo. Apesar do mau tempo no canal e dos monólogos de um solitário passageiro açoriano, que vinha sempre importunar Pessoa com as suas memórias na hora de recolher ao quarto:
— Se bem me lembro...
Foi com redobrada emoção que Fernando se sentou na sua mesa habitual da “Brasileira” e reencontrou o sorriso do Lopes, fértil em cáries, mas fiel de fraternidade:
— Pois é, sôr Fernando. Venderam o “Martinho” aos espanhóis. É a mundialização... então e Cuba, que tal?
— É plana.
A seguir trouxeram um javali e amordaçaram o bardo. Tudo voltou à normalidade na aldeia que resistia ainda e sempre ao invasor da realidade.

Von Grazen, 28/2/2003, 05h10m