Essa coisa das pinturas abstractas
Paul andava a passear na praia. Dominique, uma ave particularmente dócil, seguia Paul a curta distância, tentando meter conversa. O problema era só este: apesar da hora matinal, Paul já tinha um grãozinho na asa e não estava com paciência para dar trela a Dominique. Não obstante a “cadela” que lhe enfeitava o fígado de ressacas e o cérebro de dúvidas existenciais, ainda conseguia prestar atenção a alguns pormenores do planeta.
Quando Dominique o ultrapassou e se pôs a dar saltinhos à volta de uma garrafa de absinto, Paul parou. Olhou para a garrafa, curioso. Primeiro, passou-lhe a mão por cima, ao de leve, tirando a areia maior. Depois esfregou com vigor e pressentiu que algo estava a acontecer.
A rolha saltou com a energia do foguetão de Meliès. Um sujeitinho pequeno, tipo gnomo, amarrotado, amesendou-se na areia molhada, levou com o último grito da nova vaga de espumas e começou a insuflar-se de vida. Como se tivesse podido abandonar as cavernas do Inferno para se transformar num diplomata de olhos verdes e doutoramento em Harvard.
— Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?
— Ça alors...
— Os meus respeitos, cavalheiro. Saberá por acaso informar-me qual a graça deste pedaço de areia assaz atraente?
— Pardon?
— Como é que se chama esta merda, pá? Falo chinês, caraças?!? Catano p’rò franciú!
— Isto são as Marquesas.
Fernando olhou em volta e não viu marquesas absolutamente nenhumas.Pensou que o indígena de mau aspecto tinha apanhado sol a mais. De resto, o hálito não era nada de famoso. Optou por um tratamento circunstancial e suave. Afinal de contas, estava a jogar fora e nunca se sabia onde podia ir parar se tivesse de voltar para dentro da garrafa.
— Não é para te contrariar, mas onde é que está a nobreza toda?
— Qual nobreza?
— As marquesas...
— Isto são as Ilhas Marquesas. Fatu-Iwa.
Foi nessa altura que Fernando percebeu tudo. O caso era extremamente grave. O melhor era seguir com a corrente.
— Obrigado. Para ti também.
Como estava a ficar com fome, não perdeu mais tempo e perguntou:
— Não há por aqui um McDonald’s ou Pizza Hut?
Decididamente, o estranho homenzinho de chapéu preto e óculos redondos era um caso mental muito particular. Paul optou por fazer de conta que o Universo era perfeitamente equilibrado. Resolveu regressar para junto das suas telas. Fernando pôs-se a segui-lo, olhando analiticamente para Dominique.
— Olha lá, a passarinha é tua ou é vadia?
Dominique não tardou em bater asas e afastar-se, desconfiada com o olhar do poeta que tinha a capacidade de fugir de dentro das garrafas e fazer viagens sem sair do mesmo sítio. Dominique andava a ler Robert Bréchon.
Fernando pensou que era pena. O passarito tinha um ar tenrinho. Instintivamente, meteu a mão ao bolso. Fósforos, viste-los tu? Nunca havia nada! Nem sequer o canivete suíço que tinha tirado da arca dos heterónimos.
O sol começava a incomodar Fernando. Tirou o lenço do bolso e improvisou uma singela cobertura para a cabeça, com quatro pequenos nós nas pontas. Usou o chapéu para se abanar sem mais tardanças.
— Isto aqui faz um sol do caraças. É sempre assim cá nas Marquesas?
— Mais ou menos. É bom para pintar. É tudo uma questão de luz e momento.
Dominique sobrevoou Fernando uma primeira vez, a tirar os azimutes. Foi buscar um coco pequeno e deixou cair sobre a cabeça do poeta, que se desviou uma fracção de segundo antes do marisco desabar sobre uma pedra pontiaguda.
— Eh! pá, isto é que foi sorte. Só falta a palhinha.
Já com o estômago mais reconfortadinho com o sumo de coco, Fernando chegou bem disposto à zona onde Paul tinha deixado as suas telas, com vista para o mar e de costas para as palmeiras.
— Bolas, que as gajas daqui são bué de feias.Não deves ter pilim para modelos de jeito, está visto...
— O cavalheiro não percebe nada de pintura...
— Isto é alguma coisa?!? Diz lá, sinceramente. Pensas que eu sou algum otário? Apanhaste sol, pronto. Confessa. Cada um tem os seus azares. Se calhar és bom sapateiro, ou correeiro. Cada um é para o que nasce. Já experimentaste o artesanato?
— Qual é o problema da pintura ?
Fernando pensou que havia saias no assunto e resolveu moderar-se. Não se deve brincar com o coração de um homem, mesmo que seja um louco, desterrado numa ilha sem nada.
— Alguma destas é a tua namorada ?
— É a da esquerda. Chama-se Pahura.
Pronto. O homem era mesmo louco. E a namorada devia ter família em Itália. Mesmo assim não lembra ao Menino Jesus baptizar alguém com o nome de “Medo”. Como te chamas? Maria do Mar. E tu? Maria do Medo.
— Então e a da direita?
— É uma miúda que costuma ir até ao templo de Borobodur.
Olha que pena, pensou Fernando. Se não tivesse falhado o autocarro das onze e meia ainda podia ter ido visitar o templo de Borobodur.
— Costumas receber os guaches pelo correio, não?
— Meu caro senhor, veja como fala. Isto é “oil on canvas”.
— É aqui perto?
Paul encolheu os ombros. O mundo ainda havia de adorar a arte de Gauguin. Mas era duro ser artista. O maluco do Vicente Vemgrogue talbém lhe tinha dado cabo da cabeça com os girassóis, apesar de ser um talento emergente.
Quando Paul deu por ele, Fernando tinha virado uma tela ao contrário.
— Não gostas mais assim ?
— Meu caro senhor, deixe a tela como está. Essa tela é para ser vista da direita para a esquerda. Chama-se “Where do we come from? What are we ? Where are we going?”.
— Não vais escrever o título na tela, pois não? É que podes ficar sem tintas... olha lá, explica lá o que é esta confusão toda de pessoal...
— Isto não se explica. O que interessa é capturar o mundo interior da fantasia e do sonho. Os impressionistas olham só para o que está ao alcance da vista. Não se preocupam com os misteriosos centros do pensamento.
— Então tu não és impressionista?
— Claro que não. Eu sou um pós-impressionista. Aposto no valor do símbolo.
— Pronto, está bem. Todos têm direito. Mas olha que estas cores me continuam a fazer muita impressão.
— São as cores do Tahiti.
— Ai são? Mas o meu gel de banho não é dessas cores. Deve ser do monói...
— O cavalheiro é mesmo ignorante.
— Ignorante és tu. Conheces Almada Negreiros? Quem te dera a ti chegar-me aos calcanhares. Eu vou ficar na história da Literatura lisboeta. E tu? Quando muito és o melhor pintor desta rua. Olha, nem isso, que esta porcaria de terra nem sequer tem ruas.
— Meu caro senhor, eu vivi no Brasil, vivi na Bretanha e escolhi morrer no Tahiti. Eu traço o meu destino.
— Olha, eu vivi em muito mais sítios. E nem sabes a sorte que tens. Eu vejo-me aflito para sair da garrafa quando está bom tempo. As mais das vezes a malta só esfrega na garrafa em pleno Inverno.
Era verdade. A alma de Fernando Ortónimo estava cheia de fel. Uma dívida de jogo a um génio da lâmpada obrigara-o a entregar-se aos limites exíguos de uma garrafa, onde nem sequer havia espaço para um ratinho da Índia, quanto mais para um heterónimo.
E se Fernando Ortónimo tinha saudades dos heterónimos! A bela vida de peregrinar os lupanares da imaginação, tomar uma bebida nos confins da memória, escalar as aventuras de uma boa polémica literária, arranhar sem pruridos as consciências mais puritanas do Grémio Literário.
Deixou Paul entregue às suas cogitações e voltou ao ponto de partida. O sol estava mais fraco e uma nuvem carregada de saudades choveu sobre ele um murmúrio de carícias. Fernando sentiu a fraternidade a imigrar-lhe pelos poros adentro.
Deve ter-se enganado no caminho, porque foi parar a um restaurante com esplanada: “Why, Kiki? Bitch!”. Mas os autóctones conheciam-no pela Tasca do Ti Vicente. Havia jarrões com girassóis por todos os lados. O dono, um tipo ruivo com ar rústico, também gostava de pintar.
— Prove-me esta saladinha de polvo e depois diga-me coisas...
Fernando teve de dar o braço a torcer. A saladinha estava detrás da orelha. Já o mesmo não se podia dizer das pinturas do Ti Vicente.
— Pelos vistos, também gosta de pintar...
— Oh! Isso é só para entreter. Nem sequer vendo as telas. O meu irmão é que gosta de tratar desses assuntos. Eu prefiro ocupar-me aqui dos meus petiscos.
— Pode transmitir os meus cumprimentos ao chefe.
— Isto é tudo cozinhado por mim.
— Os meus parabéns.
— Sabe, ainda pensei num self-service, mas esta malta daqui não tem paciência para estar nas bichas. Se eu montasse um self-service, eles fugiam todos para os restaurantes de frutos tropicais, batidos, essas coisas. As miúdas aqui andam todas em topless, por isso é muito importante manter a linha.
— E então virou-se para os petiscos...
— Foi o melhor que fiz. Especializei-me na saladinha de polvo. O segredo é o vinagre. Ainda noutro dia veio cá um grupo de amigos franceses e ficaram a chorar por mais.
— Vêm cá muitos franceses?
— Nem por isso. Estes são uns pintores amigos. É a troupe do Monet e do fugitivo.
— Quem ? Nunca ouvi falar.
— É uma reinação que a malta tem. O Monet acaba por pagar as contas, que o amigo dele foge sempre na hora do digestivo e deixa-o agarrado à dolorosa. Está a ver aquele quadro grande com nenúfares? Foi ele que deixou. Não gosta dele. Diz que só o pintou porque a tinta verde e a lilás estavam em promoção.
— Por acaso gosto.
— Eu sou mais dos girassóis. Mas não tenho nada contra os nenúfares.
— Pois claro. Cada um é como cada qual.
— Ora exactamente. Pinta e deixa pintar.
Mais um doce da avozinha, mais uma baba de camelo, mais um salpicão caseiro oriundo de Saint-Vincent-de-les-Oreilles, mais uma pinga especial de coco torrado, mais um queijinho da serra, umas bolachinhas com doce de goiaba, uma bica pingada, um bagacito, quando deram por eles a tarde já se tinha posto na alheta.
É assim a vida dos pobres. Fernando Ortónimo despediu-se de abraço do Ti Vicente, arrotou alarvemente, meteu os calcantes à estrada e fez-se à praia sem mais delongas.
Demorou um bocadichinho a descobrir a garrafa, sentou-se ao pé da rebentação a olhar a lua e até fez uma festa na Dominique, que veio poisar ao seu lado.
Depois, com todos os vagares, meteu uma perna dentro da botelha, meteu outra, esticou-se todo e afunilou-se o melhor que soube. Ajeitou-se uma última vez, espreitou cá para fora pelo vidro fosco, suspirou e disse:
— Jarbas, prego a fundo para a “Twilight Zone”. Porra, que se come bem no Tahiti...
Von Grazen, 12/3/2003, 05h29m
Quando Dominique o ultrapassou e se pôs a dar saltinhos à volta de uma garrafa de absinto, Paul parou. Olhou para a garrafa, curioso. Primeiro, passou-lhe a mão por cima, ao de leve, tirando a areia maior. Depois esfregou com vigor e pressentiu que algo estava a acontecer.
A rolha saltou com a energia do foguetão de Meliès. Um sujeitinho pequeno, tipo gnomo, amarrotado, amesendou-se na areia molhada, levou com o último grito da nova vaga de espumas e começou a insuflar-se de vida. Como se tivesse podido abandonar as cavernas do Inferno para se transformar num diplomata de olhos verdes e doutoramento em Harvard.
— Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal?
— Ça alors...
— Os meus respeitos, cavalheiro. Saberá por acaso informar-me qual a graça deste pedaço de areia assaz atraente?
— Pardon?
— Como é que se chama esta merda, pá? Falo chinês, caraças?!? Catano p’rò franciú!
— Isto são as Marquesas.
Fernando olhou em volta e não viu marquesas absolutamente nenhumas.Pensou que o indígena de mau aspecto tinha apanhado sol a mais. De resto, o hálito não era nada de famoso. Optou por um tratamento circunstancial e suave. Afinal de contas, estava a jogar fora e nunca se sabia onde podia ir parar se tivesse de voltar para dentro da garrafa.
— Não é para te contrariar, mas onde é que está a nobreza toda?
— Qual nobreza?
— As marquesas...
— Isto são as Ilhas Marquesas. Fatu-Iwa.
Foi nessa altura que Fernando percebeu tudo. O caso era extremamente grave. O melhor era seguir com a corrente.
— Obrigado. Para ti também.
Como estava a ficar com fome, não perdeu mais tempo e perguntou:
— Não há por aqui um McDonald’s ou Pizza Hut?
Decididamente, o estranho homenzinho de chapéu preto e óculos redondos era um caso mental muito particular. Paul optou por fazer de conta que o Universo era perfeitamente equilibrado. Resolveu regressar para junto das suas telas. Fernando pôs-se a segui-lo, olhando analiticamente para Dominique.
— Olha lá, a passarinha é tua ou é vadia?
Dominique não tardou em bater asas e afastar-se, desconfiada com o olhar do poeta que tinha a capacidade de fugir de dentro das garrafas e fazer viagens sem sair do mesmo sítio. Dominique andava a ler Robert Bréchon.
Fernando pensou que era pena. O passarito tinha um ar tenrinho. Instintivamente, meteu a mão ao bolso. Fósforos, viste-los tu? Nunca havia nada! Nem sequer o canivete suíço que tinha tirado da arca dos heterónimos.
O sol começava a incomodar Fernando. Tirou o lenço do bolso e improvisou uma singela cobertura para a cabeça, com quatro pequenos nós nas pontas. Usou o chapéu para se abanar sem mais tardanças.
— Isto aqui faz um sol do caraças. É sempre assim cá nas Marquesas?
— Mais ou menos. É bom para pintar. É tudo uma questão de luz e momento.
Dominique sobrevoou Fernando uma primeira vez, a tirar os azimutes. Foi buscar um coco pequeno e deixou cair sobre a cabeça do poeta, que se desviou uma fracção de segundo antes do marisco desabar sobre uma pedra pontiaguda.
— Eh! pá, isto é que foi sorte. Só falta a palhinha.
Já com o estômago mais reconfortadinho com o sumo de coco, Fernando chegou bem disposto à zona onde Paul tinha deixado as suas telas, com vista para o mar e de costas para as palmeiras.
— Bolas, que as gajas daqui são bué de feias.Não deves ter pilim para modelos de jeito, está visto...
— O cavalheiro não percebe nada de pintura...
— Isto é alguma coisa?!? Diz lá, sinceramente. Pensas que eu sou algum otário? Apanhaste sol, pronto. Confessa. Cada um tem os seus azares. Se calhar és bom sapateiro, ou correeiro. Cada um é para o que nasce. Já experimentaste o artesanato?
— Qual é o problema da pintura ?
Fernando pensou que havia saias no assunto e resolveu moderar-se. Não se deve brincar com o coração de um homem, mesmo que seja um louco, desterrado numa ilha sem nada.
— Alguma destas é a tua namorada ?
— É a da esquerda. Chama-se Pahura.
Pronto. O homem era mesmo louco. E a namorada devia ter família em Itália. Mesmo assim não lembra ao Menino Jesus baptizar alguém com o nome de “Medo”. Como te chamas? Maria do Mar. E tu? Maria do Medo.
— Então e a da direita?
— É uma miúda que costuma ir até ao templo de Borobodur.
Olha que pena, pensou Fernando. Se não tivesse falhado o autocarro das onze e meia ainda podia ter ido visitar o templo de Borobodur.
— Costumas receber os guaches pelo correio, não?
— Meu caro senhor, veja como fala. Isto é “oil on canvas”.
— É aqui perto?
Paul encolheu os ombros. O mundo ainda havia de adorar a arte de Gauguin. Mas era duro ser artista. O maluco do Vicente Vemgrogue talbém lhe tinha dado cabo da cabeça com os girassóis, apesar de ser um talento emergente.
Quando Paul deu por ele, Fernando tinha virado uma tela ao contrário.
— Não gostas mais assim ?
— Meu caro senhor, deixe a tela como está. Essa tela é para ser vista da direita para a esquerda. Chama-se “Where do we come from? What are we ? Where are we going?”.
— Não vais escrever o título na tela, pois não? É que podes ficar sem tintas... olha lá, explica lá o que é esta confusão toda de pessoal...
— Isto não se explica. O que interessa é capturar o mundo interior da fantasia e do sonho. Os impressionistas olham só para o que está ao alcance da vista. Não se preocupam com os misteriosos centros do pensamento.
— Então tu não és impressionista?
— Claro que não. Eu sou um pós-impressionista. Aposto no valor do símbolo.
— Pronto, está bem. Todos têm direito. Mas olha que estas cores me continuam a fazer muita impressão.
— São as cores do Tahiti.
— Ai são? Mas o meu gel de banho não é dessas cores. Deve ser do monói...
— O cavalheiro é mesmo ignorante.
— Ignorante és tu. Conheces Almada Negreiros? Quem te dera a ti chegar-me aos calcanhares. Eu vou ficar na história da Literatura lisboeta. E tu? Quando muito és o melhor pintor desta rua. Olha, nem isso, que esta porcaria de terra nem sequer tem ruas.
— Meu caro senhor, eu vivi no Brasil, vivi na Bretanha e escolhi morrer no Tahiti. Eu traço o meu destino.
— Olha, eu vivi em muito mais sítios. E nem sabes a sorte que tens. Eu vejo-me aflito para sair da garrafa quando está bom tempo. As mais das vezes a malta só esfrega na garrafa em pleno Inverno.
Era verdade. A alma de Fernando Ortónimo estava cheia de fel. Uma dívida de jogo a um génio da lâmpada obrigara-o a entregar-se aos limites exíguos de uma garrafa, onde nem sequer havia espaço para um ratinho da Índia, quanto mais para um heterónimo.
E se Fernando Ortónimo tinha saudades dos heterónimos! A bela vida de peregrinar os lupanares da imaginação, tomar uma bebida nos confins da memória, escalar as aventuras de uma boa polémica literária, arranhar sem pruridos as consciências mais puritanas do Grémio Literário.
Deixou Paul entregue às suas cogitações e voltou ao ponto de partida. O sol estava mais fraco e uma nuvem carregada de saudades choveu sobre ele um murmúrio de carícias. Fernando sentiu a fraternidade a imigrar-lhe pelos poros adentro.
Deve ter-se enganado no caminho, porque foi parar a um restaurante com esplanada: “Why, Kiki? Bitch!”. Mas os autóctones conheciam-no pela Tasca do Ti Vicente. Havia jarrões com girassóis por todos os lados. O dono, um tipo ruivo com ar rústico, também gostava de pintar.
— Prove-me esta saladinha de polvo e depois diga-me coisas...
Fernando teve de dar o braço a torcer. A saladinha estava detrás da orelha. Já o mesmo não se podia dizer das pinturas do Ti Vicente.
— Pelos vistos, também gosta de pintar...
— Oh! Isso é só para entreter. Nem sequer vendo as telas. O meu irmão é que gosta de tratar desses assuntos. Eu prefiro ocupar-me aqui dos meus petiscos.
— Pode transmitir os meus cumprimentos ao chefe.
— Isto é tudo cozinhado por mim.
— Os meus parabéns.
— Sabe, ainda pensei num self-service, mas esta malta daqui não tem paciência para estar nas bichas. Se eu montasse um self-service, eles fugiam todos para os restaurantes de frutos tropicais, batidos, essas coisas. As miúdas aqui andam todas em topless, por isso é muito importante manter a linha.
— E então virou-se para os petiscos...
— Foi o melhor que fiz. Especializei-me na saladinha de polvo. O segredo é o vinagre. Ainda noutro dia veio cá um grupo de amigos franceses e ficaram a chorar por mais.
— Vêm cá muitos franceses?
— Nem por isso. Estes são uns pintores amigos. É a troupe do Monet e do fugitivo.
— Quem ? Nunca ouvi falar.
— É uma reinação que a malta tem. O Monet acaba por pagar as contas, que o amigo dele foge sempre na hora do digestivo e deixa-o agarrado à dolorosa. Está a ver aquele quadro grande com nenúfares? Foi ele que deixou. Não gosta dele. Diz que só o pintou porque a tinta verde e a lilás estavam em promoção.
— Por acaso gosto.
— Eu sou mais dos girassóis. Mas não tenho nada contra os nenúfares.
— Pois claro. Cada um é como cada qual.
— Ora exactamente. Pinta e deixa pintar.
Mais um doce da avozinha, mais uma baba de camelo, mais um salpicão caseiro oriundo de Saint-Vincent-de-les-Oreilles, mais uma pinga especial de coco torrado, mais um queijinho da serra, umas bolachinhas com doce de goiaba, uma bica pingada, um bagacito, quando deram por eles a tarde já se tinha posto na alheta.
É assim a vida dos pobres. Fernando Ortónimo despediu-se de abraço do Ti Vicente, arrotou alarvemente, meteu os calcantes à estrada e fez-se à praia sem mais delongas.
Demorou um bocadichinho a descobrir a garrafa, sentou-se ao pé da rebentação a olhar a lua e até fez uma festa na Dominique, que veio poisar ao seu lado.
Depois, com todos os vagares, meteu uma perna dentro da botelha, meteu outra, esticou-se todo e afunilou-se o melhor que soube. Ajeitou-se uma última vez, espreitou cá para fora pelo vidro fosco, suspirou e disse:
— Jarbas, prego a fundo para a “Twilight Zone”. Porra, que se come bem no Tahiti...
Von Grazen, 12/3/2003, 05h29m
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