Mazurka Apassionata
O fumo dos cigarros amarinhava escandalosamente pelas paredes rascas de uma tasca de má fama com o nome vulgar de “Le Polonais Heureux”. Acção: Hamburgo. Zona: docas. Porque sim.
O tempo fosco e irritante convidava ao suicídio por acção directa, mas Álvaro dos Prados estava mais virado para a cerveja alemã. E a verdadeira devassidão etílica e existencial não podia encontrar melhor porto de abrigo do que “Le Polonais Heureux”, assim baptizado em homenagem a um franco-polaco tuberculoso que se parecia um bocado de trombas com Óscar Selvagem, vate céltico arrogante e genial.
Frederik ‘Show-Pain’ (dava-lhe para os “blues” e a música é que levava a toda a força com o granel melódico-depressivo) era um ‘habitué’ do “Le Polonais Heureux” e Frida Pizza-Khalos (a dona da tasca) resolvera mudar o nome do estabelecimento de “Adolfo Mau-Feitio” para “Le Polonais Heureux”.
Quando Álvaro entrou, o bofes-moles do Frederik estava sentado à pianola a tocar a sua mais recente mazurka: “Allez les Blues”, copos 68, alínea c). Fez sinal a Álvaro para que se lhe juntasse. O português abancou sem preconceitos. Com um gesto dos lábios e um trejeito de sobrancelha (só ao alcance dos bêbedos mais dotados) encomendou em morse-mais-ou-menos uma cerveja alemã e um “shot” do bagacinho importado de Campo de Ourique City. Pois evidentemente. O poeta tinha garrafa (trazida da santa terrinha) com poiso certo no “Le Polonais Heureux”.
— Então, man?
Frederik não era de grandes cerimónias com as palavras e Álvaro respondeu-lhe na mesma moeda, que não em marcos alemães.
— ‘Tá-se bem.
A amizade tem destas coisas. É capaz de juntar um polaco que desistiu de Zelazowa Wola (também... um gajo que nasce num sítio destes o melhor que tem a fazer é emigrar) a um português que não gostava de viajar nem à lei da bala, mas que chegou a Hamburgo de paquete, para tratar de uns assuntos a Herr Neuss Ferrari. Uns terrenos nos Cárpatos, uma trama assim meio para o psicadélico-transilvânico.
Cenas.
— Gostas da minha última mazurka?
— Já te disse várias vezes que isso da bazuka não é música a sério. É bonito, mas falta-lhe o sentimento do fado.
Frederik ficou um bocado sentido com a “overdose” de sinceridade de Monsieur dos Prados e embezerrou, depois de sussurrar de forma audível:
— O que percebes tu de música? A tua pátria é a língua portuguesa.
— Fred, a amizade tem destas coisas: é preciso ouvir as verdades de coração aberto.
— Álvarinho, sabes que curto de ti bué, mas a minha cena é mesmo mazurkas. Ando nisto há muito tempo. Em Paris toda a malta adora este “swing”.
— Música é Stan Getz, Ike Quebec. Saxofone a sério.
— Álvarinho, o jazz é devassidão. Olha, para já, um é drogado, o outro é preto.
— Tens de perceber uma coisa. Cada um com os seus paraísos artificiais, desde que não chateie os outros. Além do mais, não podes dizer que não gostas de jazz. Até aposto que farias excelentes duetos com Bill Evans e Kenny Barron.
— Essas gajos mazurkam?
— Não mazurkam nada, foda-se, que já me fizeste falar mal! São pianistas do melhor. Cinco estrelas!
O fumo dos cigarros manhosos e o cheiro a sovaco de puta misturou-se de forma subreptícia na atmosfera delirantemente subversiva do bar. Álvaro dos Prados desconhecia que desconhecia toda a essência de uma boa mazurkada.
Com jeitinho, à medida que os “shots” de bagaço iam amaciando o bucho do lusitano, Frederik ia convertendo o amigo à causa das mazurkas. Na pior das hipóteses, deixava-o na dúvida.
— É como te digo, Álvarinho, quem nunca mazurkou não pode atirar a primeira pedra.
Valha a verdade que Frederik tinha o dom da palavra. Percorreu o passado com inaudita titilância e, em pezinhos de mocassin, foi convencendo Álvaro da relevância histórico-musical da sua causa.
— Isto já vem do século XVI. Agora é uma dança polaca, mas está intimamente ligada com o oberek, a polska e o kujawiak.
— Do Kujawiak lembro-me bem. Foi mais um bom avançado que o Sporting queimou.
A conversa estava no seu Evereste intelectual quando, ziguezagueando por entre os moinantes teutónicos, se chegou à boca de cena o grande Jorge Sandes, amigo íntimo de Frederik.
Se Álvaro já estava quase convencido das virtudes éticas da mazurka, a chegada de Jorge Sandes acabou por se revelar decisiva, porque o raio do homem era um nadinha persuasivo no que tocava a masturbar os méritos mazurkenses:
— Álvarinho, sabes que eu até tenho umas zangas valentes com o Fred, mas quando ele tem razão sou o primeiro a dar o baço a torcer. A mazurka foi a melhor coisinha que se inventou até agora, no que diz respeito a música. A mazurka é a rainha das danças sociais, quando bem executada. E aqui o Fred toca que é um disparate. A Maria Nicolaevna, filha do Nicolau, criou a Polka Mazur, que é um disparate de qualidade. Estupidamente divina, ainda melhor que uma Carlsberg estupidamente gelada, num fim de tarde na Fonte da Telha.
— Não sei quem é a Maria Nicolaevna. Já há muito tempo que não vou às putas. E a única que conheço com jeito para tocar, aqui nas docas, é a Heidi, que toca clarinete e é só quando está bêbeda.
— Álvarinho, acorda, por favor. A Maria Nicolaevna é a filha do Nicolau I da Rússia e criou a Polka Mazur em 1830!
— Sabia lá eu!
Frederik e Jorge Sandes resolveram deixar a conversa por ali e foram-se embora, deixando Álvaro embrenhado nos seus embebidos bagaçais. Mal saíram, Frida Pizza-Khalos olhou de soslaio para Álvaro dos Prados e dos lábios saiu-lhe um “psst” mais sibilante que uma naja desempregada a caminho de um trilho no meio de ervas altas.
— Herr Dos Prados, o senhor é que sabe da sua vida, mas eu se fosse a si tinha muito cuidado. O Herr Sandes gosta de se vestir de mulher quando está sozinho com o Frederik. Gosto muito de o ver a tocar na bazuka, mas é um sujeito estranho. O meu dever é avisá-lo!
— Ah! que frescura na face de não cumprir um dever! Agradeço todo o seu cuidado, Dona Frida, mas sei as linhas com que me coso. E também sei as outras linhas férreas todas. Tive uma boa instrução, D. Frida. Hoje a miudagem não sabe nada. É o dia todo enfiada no buraco do Osório, aquele “bunker” infecto cheio de mesas de matraquilhos, cavalinhos e dominó. No meu tempo, se queríamos divertir-nos, víamos as moscas ao microscópio, tínhamos caixinhas cheias de calhaus, tipo feldspato, mica, hulha, coisas assim, D. Frida. Então e as suas pinturas?
— Ah! tem estado tudo em meias tintas, Herr Dos Prados. Não é só a inspiração. Sabe, isto de ter uma tasca em zona de putas dá muito trabalho. Quem me dera poder dedicar-me à pintura a tempo inteiro.
— Se um dia fôr a Lisboa, pergunte por mim na Brazileira. Tenho uma amiga minha que a pode ajudar a mostrar os seus trabalhos.
— Ai sim? E ela pinta bem?
— Olá se pinta! Na zona do Rego ninguém pinta melhor do que a Paula. Abusa um bocado dos castanhos e das gajas com cara de enjoadas, mas tem uma pintura que sai muito bem no Natal e na Páscoa.
Álvaro mandou pôr a despesa na conta e saiu.
Para variar, estava um frio do caraças e chovia. “Hamburgo era uma cidade que não se comia nem com mostarda ou molho de tomate!”, pensou Fernando António Nogueira Pessoa, um heterónimo que Álvaro tinha criado para os climas mais agrestes.
O Fred e o Sandes já deviam estar aconchegados num salão qualquer a discutir as últimas teorias filosóficas. Que ficassem com as paranóias deles. Álvaro pôs-se a caminhar ao sabor das mamas e das mini-saias, do cheiro convulso das ratas mal lavadas. Não lhe apetecia cobrir. Não lhe apetecia descobrir-se (continuava a chover). Nem se conseguia descobrir.
Havia dias em que acordava na cama com o Ricardo Reis. Havia noites em que não lhe saía da cabeça o Bernardo Soares. O pior era quando lhe invadia a intimidade um novo heterónimo, o Soares dos Reis, uma perniciosa mistura dos dois, que não descansou enquanto não arranjou um ‘tacho’ num museu do Porto.
Álvaro nunca conseguiu vender-se aos simples interesses materiais.
“Não, não quero nada, já disse que não quero nada”. Sempre disse isto. E nunca quis nada para si. Nem para si, nem para a Daisy, a sua miúda. A Ofélia recusou-se a fazer-lhe certas coisas e ele pô-la com dono.
“Está bem que o Soares dos Reis é um heterónimo com os seus méritos. Isso ninguém lhe retira. Foi ele que levou para o museu de Vila Velha de Rodin a famosa estátua do ‘Pensador’. Ao fim da primeira semana os putos já a tinham enchido de grafitti, mas a culpa foi da falta de vigilância. Portugal é Portugal, não é? Não dá para deixar originais nas exposições, assim em auto-gestão, sem ninguém a vigiar”.
Era um bom homem, Álvaro dos Prados. Com os seus defeitos, como toda a gente. Nem todos podem ter a arte de conjugar uma mazurka de trás para a frente.
Hamburgo tinha aparecido à má-fila na sua vida, enquanto o sócio de Herr Neuss Ferrari, Doktor Wolf Bat, não se decidia a dar andamento ao negócio do castelo. Mas a firma londrina tinha mandado Jonathan Parker com os documentos e o jovem perdeu-se de amores por uma miúda pálida, abriu uma fábrica de canetas e nunca mais se soube dele pelos lados da Roménia.
Coisas que um homem não pode prever.
Álvaro levantou a gola puída do casaco, abanou as abas do chapéu para sacudir a chuva, afiambrou meia-dúzia de passos mais decididos e desligou-se da realidade com a suavidade dos sonhadores.
Ele sabia que a eternidade lhe pagaria o devido tributo.
Com ou sem mazurkas.
Era o que mais faltava.
O tempo fosco e irritante convidava ao suicídio por acção directa, mas Álvaro dos Prados estava mais virado para a cerveja alemã. E a verdadeira devassidão etílica e existencial não podia encontrar melhor porto de abrigo do que “Le Polonais Heureux”, assim baptizado em homenagem a um franco-polaco tuberculoso que se parecia um bocado de trombas com Óscar Selvagem, vate céltico arrogante e genial.
Frederik ‘Show-Pain’ (dava-lhe para os “blues” e a música é que levava a toda a força com o granel melódico-depressivo) era um ‘habitué’ do “Le Polonais Heureux” e Frida Pizza-Khalos (a dona da tasca) resolvera mudar o nome do estabelecimento de “Adolfo Mau-Feitio” para “Le Polonais Heureux”.
Quando Álvaro entrou, o bofes-moles do Frederik estava sentado à pianola a tocar a sua mais recente mazurka: “Allez les Blues”, copos 68, alínea c). Fez sinal a Álvaro para que se lhe juntasse. O português abancou sem preconceitos. Com um gesto dos lábios e um trejeito de sobrancelha (só ao alcance dos bêbedos mais dotados) encomendou em morse-mais-ou-menos uma cerveja alemã e um “shot” do bagacinho importado de Campo de Ourique City. Pois evidentemente. O poeta tinha garrafa (trazida da santa terrinha) com poiso certo no “Le Polonais Heureux”.
— Então, man?
Frederik não era de grandes cerimónias com as palavras e Álvaro respondeu-lhe na mesma moeda, que não em marcos alemães.
— ‘Tá-se bem.
A amizade tem destas coisas. É capaz de juntar um polaco que desistiu de Zelazowa Wola (também... um gajo que nasce num sítio destes o melhor que tem a fazer é emigrar) a um português que não gostava de viajar nem à lei da bala, mas que chegou a Hamburgo de paquete, para tratar de uns assuntos a Herr Neuss Ferrari. Uns terrenos nos Cárpatos, uma trama assim meio para o psicadélico-transilvânico.
Cenas.
— Gostas da minha última mazurka?
— Já te disse várias vezes que isso da bazuka não é música a sério. É bonito, mas falta-lhe o sentimento do fado.
Frederik ficou um bocado sentido com a “overdose” de sinceridade de Monsieur dos Prados e embezerrou, depois de sussurrar de forma audível:
— O que percebes tu de música? A tua pátria é a língua portuguesa.
— Fred, a amizade tem destas coisas: é preciso ouvir as verdades de coração aberto.
— Álvarinho, sabes que curto de ti bué, mas a minha cena é mesmo mazurkas. Ando nisto há muito tempo. Em Paris toda a malta adora este “swing”.
— Música é Stan Getz, Ike Quebec. Saxofone a sério.
— Álvarinho, o jazz é devassidão. Olha, para já, um é drogado, o outro é preto.
— Tens de perceber uma coisa. Cada um com os seus paraísos artificiais, desde que não chateie os outros. Além do mais, não podes dizer que não gostas de jazz. Até aposto que farias excelentes duetos com Bill Evans e Kenny Barron.
— Essas gajos mazurkam?
— Não mazurkam nada, foda-se, que já me fizeste falar mal! São pianistas do melhor. Cinco estrelas!
O fumo dos cigarros manhosos e o cheiro a sovaco de puta misturou-se de forma subreptícia na atmosfera delirantemente subversiva do bar. Álvaro dos Prados desconhecia que desconhecia toda a essência de uma boa mazurkada.
Com jeitinho, à medida que os “shots” de bagaço iam amaciando o bucho do lusitano, Frederik ia convertendo o amigo à causa das mazurkas. Na pior das hipóteses, deixava-o na dúvida.
— É como te digo, Álvarinho, quem nunca mazurkou não pode atirar a primeira pedra.
Valha a verdade que Frederik tinha o dom da palavra. Percorreu o passado com inaudita titilância e, em pezinhos de mocassin, foi convencendo Álvaro da relevância histórico-musical da sua causa.
— Isto já vem do século XVI. Agora é uma dança polaca, mas está intimamente ligada com o oberek, a polska e o kujawiak.
— Do Kujawiak lembro-me bem. Foi mais um bom avançado que o Sporting queimou.
A conversa estava no seu Evereste intelectual quando, ziguezagueando por entre os moinantes teutónicos, se chegou à boca de cena o grande Jorge Sandes, amigo íntimo de Frederik.
Se Álvaro já estava quase convencido das virtudes éticas da mazurka, a chegada de Jorge Sandes acabou por se revelar decisiva, porque o raio do homem era um nadinha persuasivo no que tocava a masturbar os méritos mazurkenses:
— Álvarinho, sabes que eu até tenho umas zangas valentes com o Fred, mas quando ele tem razão sou o primeiro a dar o baço a torcer. A mazurka foi a melhor coisinha que se inventou até agora, no que diz respeito a música. A mazurka é a rainha das danças sociais, quando bem executada. E aqui o Fred toca que é um disparate. A Maria Nicolaevna, filha do Nicolau, criou a Polka Mazur, que é um disparate de qualidade. Estupidamente divina, ainda melhor que uma Carlsberg estupidamente gelada, num fim de tarde na Fonte da Telha.
— Não sei quem é a Maria Nicolaevna. Já há muito tempo que não vou às putas. E a única que conheço com jeito para tocar, aqui nas docas, é a Heidi, que toca clarinete e é só quando está bêbeda.
— Álvarinho, acorda, por favor. A Maria Nicolaevna é a filha do Nicolau I da Rússia e criou a Polka Mazur em 1830!
— Sabia lá eu!
Frederik e Jorge Sandes resolveram deixar a conversa por ali e foram-se embora, deixando Álvaro embrenhado nos seus embebidos bagaçais. Mal saíram, Frida Pizza-Khalos olhou de soslaio para Álvaro dos Prados e dos lábios saiu-lhe um “psst” mais sibilante que uma naja desempregada a caminho de um trilho no meio de ervas altas.
— Herr Dos Prados, o senhor é que sabe da sua vida, mas eu se fosse a si tinha muito cuidado. O Herr Sandes gosta de se vestir de mulher quando está sozinho com o Frederik. Gosto muito de o ver a tocar na bazuka, mas é um sujeito estranho. O meu dever é avisá-lo!
— Ah! que frescura na face de não cumprir um dever! Agradeço todo o seu cuidado, Dona Frida, mas sei as linhas com que me coso. E também sei as outras linhas férreas todas. Tive uma boa instrução, D. Frida. Hoje a miudagem não sabe nada. É o dia todo enfiada no buraco do Osório, aquele “bunker” infecto cheio de mesas de matraquilhos, cavalinhos e dominó. No meu tempo, se queríamos divertir-nos, víamos as moscas ao microscópio, tínhamos caixinhas cheias de calhaus, tipo feldspato, mica, hulha, coisas assim, D. Frida. Então e as suas pinturas?
— Ah! tem estado tudo em meias tintas, Herr Dos Prados. Não é só a inspiração. Sabe, isto de ter uma tasca em zona de putas dá muito trabalho. Quem me dera poder dedicar-me à pintura a tempo inteiro.
— Se um dia fôr a Lisboa, pergunte por mim na Brazileira. Tenho uma amiga minha que a pode ajudar a mostrar os seus trabalhos.
— Ai sim? E ela pinta bem?
— Olá se pinta! Na zona do Rego ninguém pinta melhor do que a Paula. Abusa um bocado dos castanhos e das gajas com cara de enjoadas, mas tem uma pintura que sai muito bem no Natal e na Páscoa.
Álvaro mandou pôr a despesa na conta e saiu.
Para variar, estava um frio do caraças e chovia. “Hamburgo era uma cidade que não se comia nem com mostarda ou molho de tomate!”, pensou Fernando António Nogueira Pessoa, um heterónimo que Álvaro tinha criado para os climas mais agrestes.
O Fred e o Sandes já deviam estar aconchegados num salão qualquer a discutir as últimas teorias filosóficas. Que ficassem com as paranóias deles. Álvaro pôs-se a caminhar ao sabor das mamas e das mini-saias, do cheiro convulso das ratas mal lavadas. Não lhe apetecia cobrir. Não lhe apetecia descobrir-se (continuava a chover). Nem se conseguia descobrir.
Havia dias em que acordava na cama com o Ricardo Reis. Havia noites em que não lhe saía da cabeça o Bernardo Soares. O pior era quando lhe invadia a intimidade um novo heterónimo, o Soares dos Reis, uma perniciosa mistura dos dois, que não descansou enquanto não arranjou um ‘tacho’ num museu do Porto.
Álvaro nunca conseguiu vender-se aos simples interesses materiais.
“Não, não quero nada, já disse que não quero nada”. Sempre disse isto. E nunca quis nada para si. Nem para si, nem para a Daisy, a sua miúda. A Ofélia recusou-se a fazer-lhe certas coisas e ele pô-la com dono.
“Está bem que o Soares dos Reis é um heterónimo com os seus méritos. Isso ninguém lhe retira. Foi ele que levou para o museu de Vila Velha de Rodin a famosa estátua do ‘Pensador’. Ao fim da primeira semana os putos já a tinham enchido de grafitti, mas a culpa foi da falta de vigilância. Portugal é Portugal, não é? Não dá para deixar originais nas exposições, assim em auto-gestão, sem ninguém a vigiar”.
Era um bom homem, Álvaro dos Prados. Com os seus defeitos, como toda a gente. Nem todos podem ter a arte de conjugar uma mazurka de trás para a frente.
Hamburgo tinha aparecido à má-fila na sua vida, enquanto o sócio de Herr Neuss Ferrari, Doktor Wolf Bat, não se decidia a dar andamento ao negócio do castelo. Mas a firma londrina tinha mandado Jonathan Parker com os documentos e o jovem perdeu-se de amores por uma miúda pálida, abriu uma fábrica de canetas e nunca mais se soube dele pelos lados da Roménia.
Coisas que um homem não pode prever.
Álvaro levantou a gola puída do casaco, abanou as abas do chapéu para sacudir a chuva, afiambrou meia-dúzia de passos mais decididos e desligou-se da realidade com a suavidade dos sonhadores.
Ele sabia que a eternidade lhe pagaria o devido tributo.
Com ou sem mazurkas.
Era o que mais faltava.
2 Comments:
Epá não me lembro de me rir tanto a ler algo, pelo menos no ano que acaba.
Já agora deixa-me dizer-te que adorei o teu poema solestício-invernal colocado no blog da Inês.
Eu sei que isto é capaz de soar mal, mas a ver se a malta se junta toda outra vez para partir o queijo e barrá-lo no pão :-D
Abraço!
By RD, at 8:56 da manhã
Muito obrigado, Rui. Também gostei que o teu poema tivesse fugido à onda de "Olha o Menino Jesus tão pequenino nas palhinhas e a vaquinha a bufar para aquecer o Menino Jesus".
Isto não é nada contra o Menino Jesus. É a favor.
Mas um sector mais conservador da minha tertúlia poética não gostava muito de certas liberdades e ficou chocado com um "porra" no último verso de um poema de há dois anos. Pelo que acabei uma série de poemas de Natal em que entravam sempre um Pai Natal bêbedo, um Deus bonacheirão, um Menino Jesus adepto dos desportos radicais e um Diabo sempre vocacionado para brincadeiras de algum mau gosto.
Quanto a estes contos do Pessoa, ainda bem que te divertiram.
O mesmo aconteceu comigo, no processo de escrita.
Foram todos inspirados por sessões na Casa Fernando Pessoa, menos o último, porque eu estava no Fontão Fundeiro, perto de Figueiró dos Vinhos. No caso concreto do Mazurka Passionata, foi uma sessão que contou com a presença da pianista Carla Seixas, a tocar mazurkas.
Cheguei a casa, pus "Mazurkas" no google, li um bocado, depois agarrei nos livros do Pessoa e deu nisto.
É Mário-Henrique Leiria com Monty Python, é O'Neill com desenhos animados da Warner Brothers. É muita BD e muito cinema.
Em sessões nocturnas.
Quanto a uma AGP (Assembleia-Geral Poética) tenho muito gosto. O ano de 2007 tem dias e noites à brava. É questão de combinar.
By Anónimo, at 5:50 da manhã
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