15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, dezembro 17, 2006

Allez, UCP!

Não se trata de reviver o clima das Unidades Colectivas de Produção ou da Reforma Agrária. Não se trata de andar empoleirado em camiões de caixa aberta, a gritar pelas ruas.
Os tempos são outros.
Os tempos que vivemos são os da União Ciclística Poética (UCP), agremiação velocipédica que nasceu muito por força da filantrópica teimosia de um homem. Não um vulgar ser humano, mas um cavalheiro da mais fina estirpe: Bernardo Soares.
“Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos. Um poço fitando o céu”, afirmou o ajudante de guarda-livros na cerimónia ocorrida na Federação Portuguesa de Ciclismo, Ciclo-Turismo, BTT, Passeios de Bicicleta e Actividades Similares (F.P.C.C-T.B.T.T.P.B.A.S).
“Mas apesar de nunca nos realizarmos, há momentos da nossa vida em que as coisas valem a pena”, continuou. Alguém segredou rapidamente que tudo vale a pena se a alma não é pequena. Bernardo Soares nem se apercebeu do facto e prosseguiu o seu discurso de investidura:
“Se alguém é digno dos maiores encómios, esse alguém é o secretário-geral da UCP, o senhor Ricardo Zénite, uma pessoa a quem todos os sócios-fundadores devem muito. Ele abdicou de inúmeras horas de lazer para nos ajudar a construir este sonho chamado União Ciclística Poética. Foi também através dos seus bons ofícios que conseguimos um wild-card para participar no Tour. Escusado será dizer que de outra forma nem seríamos recebidos pela organização da Volta à França. Não é qualquer equipa que faz a sua estreia competitiva em pleno Tour. De resto, vamos mesmo entrar para o Guiness como a primeira equipa do mundo a estrear-se fora do seu país. É óbvio que não podemos esperar muito da nossa primeira participação. Um lugar a meio da tabela, colectivamente, será uma boa classificação. Individualmente, ficarei satisfeito se metermos um poeta nos dez primeiros. Mais do que isto será pura utopia. Não escondo, contudo, o sonho de poder andar de “maillot jaune” um dia ou dois. Seria extremamente importante para o nosso principal patrocinador, a Sociedade Portuguesa de Estivadores. Gostaria de agradecer muito particularmente ao seu actual presidente, senhor Luiz Rabisco Rebelde”.
Bernardo Soares referiu-se ainda às possibilidades da equipa no que respeitava às outras camisolas. A camisola verde, dos Pontos, teria em Mário de Sá-Carneiro um forte candidato, ele que era um verdadeiro sprinter da poesia. Para a montanha, havia que contar com Teixeira de Pascoaes, habituado às serranias de Amarante.
Por especial deferência da organização, a equipa UCP foi autorizada a correr com mais elementos do que os das outras formações. Para além disso, os números dos ciclistas da UCP eram perfeitamente aleatórios. Ou melhor, tinham sido escolhidos por um representante do Governo Civil e por Fernando António, num acordo que misturava legalidade e cabalística.
Dessa forma, Bernardo Soares alinhou com o 69. Porque era “muito bom a fazer piões em derrapagem controlada”. Teixeira de Pascoaes foi para a estrada com o 666, porque gostava muito que lhe chamassem o “Demónio das Montanhas”. Mário de Sá-Carneiro ficou com o 22, porque a sua poesia tinha a elegância de dois cisnes a nadar no lago das palavras. Luiz Vaz de Camões contentou-se com o 1111, porque gostava de todos os conjuntos em que José Cid tinha participado. Bocage fez uma enorme birra quando lhe atribuíram o 1313. Queria alinhar com o 69.
“Não pode ser, Manuel Maria. Repare que é muito importante que seja o chefe-de-fila Bernardo Soares a alinhar com um número iniciático como o 69. Se Deus quiser, este será o primeiro de muitos Tour. Não faltarão ocasiões para alinhar com o 69”, disse Ricardo Zénite, um elemento sobremaneira apaziguador. Uma voz amiga a qualquer hora do dia ou da noite.
Um fax para a organização da Volta à França permitiu esclarecer a situação. Na volta da telecópia apareceu uma autorização para que Manuel Maria alinhasse, a título de excepção, com o número 69-B.
Havia ainda Alexandre O’Neill (777), Jorge de Sousa Braga (888), Manuel António Pina (7-B, por causa do número de vidas dos gatos, animais que muito estimava), Pedro Mexia (1999, não por causa da série televisiva, mas por ser a data de edição do seu livro “ O duplo de Tibério”), Armando Silva Carvalho (1001) e Cesário Verde (10-A, em homenagem à famosa porta do estádio do Sporting, o seu clube de sempre).


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No dia 14 de Julho de 2006, à partida para a 8ª etapa do Tour, o panorama desportivo da UCP era tão desolador que os corredores da Volta à França tinham decidido, em plenário, conceder uma hora de avanço à equipa portuguesa. Até porque a etapa terminaria no mítico Alpe D’Huez, onde Joaquim Agostinho fez levantar bem alto o orgulho lusitano, no final da década de 70.
— A geração de 70 é que era boa. O Jaquim, o Nando Mendes, o Zé Martins. Agora... pff, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato — disse Alexandre O’Neill, que andava às voltinhas com a bicicleta, de um lado para o outro; e tinha trocado o bife com esparguete das 7 da manhã por um queijinho fresco e um pires de doces regionais.
— Tens razão, Alexandre — rematou Bocage.
— Ó Manuel Maria, não lhe dê força. Vamos partir para uma das etapas mais difíceis e o cavalheiro entra na onda dos derrotismos. Não podemos partir para a tirada com este espírito — alertou Bernardo Soares, o mais bem classificado da UCP, nessa altura. Ocupava o 183º posto, a 4 horas, 23 minutos e 7 segundos do “maillot jaune”, Teddy Zerckx. E tinha tomado atalhos em três etapas, sem ninguém ver.
— Olhem, para já, não vou de capacete — avisou Bocage, que considerava os capacetes como “preservativos cranianos sem qualquer utilidade”.
— Ai que castigo, Manuel Maria, todas as manhãs a mesma coisa — irritou-se Bernardo Soares, que andava permanentemente num desassossego, por causa das coisas da equipa. Dizia-se à boca pequena que ele andava a escrever um diário sobre a participação da equipa portuguesa no Tour: “O livro do desassossego”, com prefácio de Lanche Armstrong.
— Ó Manel Maria, desculpe-me que lhe diga, mas o cavalheiro não é mais que os outros. Lá por ter conquistado três “pontos quentes” em que ofereciam jambons e pâtisseries não é motivo para se sentir um ciclista à parte — insistiu Bernardo.
— Ó chefe, você pode até perceber umas coisas de ciclismo, mas de pontos quentes percebo eu. E conquistei muito mais do que três pontos quentes, no decurso da minha vida. Além disso, se a etapa é sempre a subir, para que é o capacete?
— Por amor de Deus, Manuel Maria, é a subir e a descer, a subir e a descer. Só no fim é que é a subir, a subir, a subir. E depois acaba.
Bernardo Soares não o confessava, mas receava particularmente a etapa desse dia. Pela primeira vez a equipa ia partir toda junta, sem mais nenhum ciclista ao lado, o que era assustador. Se já se distraíam imenso no meio do pelotão, sozinhos havia de ser o bom e o bonito.
Já todos tinham assinado o “ponto”, Jorge de Sousa Braga aproveitara para se “fazer ao piso” de uma das meninas do pódio, que ia a passar na zona. Escreveu por baixo da sua assinatura: “Ao menos os teus olhos permanecem verdes todo o ano”. E depois mostrou-lhe a frase e traduziu para francês, com sotaque do Porto. O que se podia esperar de um poeta que já fizera sair pombos pela braguilha, numa sessão de declamação?
Com grande dificuldade, Bernardo Soares lá conseguiu levar a equipa para a linha de meta à hora certa. Quer dizer, uma hora antes da partida do resto do pelotão. A assistência até pensava que aqueles ciclistas com camisola roxa, rosa e verde-alface e calções amarelo-canário (escolha de Armando Silva Carvalho na brincadeira, mas os outros tinham achado ‘very cool’) ainda faziam parte da caravana publicitária ou andavam a distribuir brindes.
Ao tiro de partida, lá se volatilizaram em boa velocidade, numa manifestação pura de ostentação. Mal deixaram de ter espectadores no percurso reduziram a marcha. Pedro Mexia, que era o “benjamim” da equipa, ainda se atreveu a perguntar:
— Mas não temos hipótese de fazer umas flores nesta etapa? Afinal, partimos com uma hora de avanço...
Seguiu-se um coro de gargalhadas. Cesário Verde riu-se tanto que chocou contra Mário de Sá-Carneiro e caíram os dois.
— Ó Pedro, deixe-me que o esclareça: a montanha tem dois lados. Nós vamos passar pelo lado que sobe. Se não fossem as repescagens diárias por mérito cultural já nem havia equipa — adiantou Manuel António Pina, que tinha de resistir continuamente ao impulso de encostar a bicicleta e ficar a fazer festas ao gatos que mansamente se espreguiçavam na prazenteira “campagne” dos irredutíveis gauleses.
— Vamos chegar lá acima todos mortos, se é que chegamos — disse, quase estoirado de riso, Cesário Verde, que já tinha montado na bicicleta outra vez e piscava o olho a Mário de Sá-Carneiro, a quem os colegas tinham alcunhado de “Quasi”. Quasi tinha vencido a meta volante, quasi não tinha caído, quasi ficava nos primeiros da geral. Mário desculpava-se com o tempo algo chuvoso em certas etapas: “Um pouco mais de sol eu era brasa, um pouco mais de azul eu era além”.
— Olhem, por acaso o Tom Simpson morreu a subir o Mont Ventoux. Se algum de nós cair para o lado em plena subida eu dou-lhe a extrema-unção — disse Pina, que não perdeu balanço e declamou: “Morrer não é motivo de orgulho/mas estavas cansado de mais para te justificares/Ainda por cima no mês de Julho/ com as férias marcadas, ausentes os familiares”.
— Eu acho que não vamos cair. Pelo menos na classificação é impossível cair mais — lançou Bocage.
— Boa, Manel Maria! Escreve já essa, para não te esqueceres. Podes meter no teu livro de anedotas que vai sair no Natal — sugeriu Jorge de Sousa Braga.
Bernardo Soares teve de se impor. Ainda só estavam a pedalar há dez minutos e já queriam parar para escrever coisas.
— Ninguém pára para escrever nada. Nem que tenha na cabeça o poema mais bonito do mundo. Isto agora é o Tour de France e estamos aqui para defender o bom nome de Portugal e dos nossos patrocinadores. Há um mínimo!
Vendo o facies irado de Bernardo Soares, os ciclistas da UCP lá perceberam que era conveniente meter umas férias repartidas na galhofa habitual, não fosse dar uma coisa ao Bernardo. Afinal, o homem até se tinha esforçado. Quase todos os poetas andavam no ciclismo pelo convívio, queriam era literatura, copos e gajas. Curtir umas paisagens, fugir da família, conquistar a imortalidade do Olimpo a desbravar quilómetros.
O Bernardo não era assim. Metiam-se-lhe umas coisas na cabeça e depois era o Diabo para lhe saírem da caixa dos pirolitos. Por vezes, temiam pela sua sanidade mental. Porque o Bernardo dizia coisas do estilo: “Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela. Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual”.
É caso para uma pessoa se preocupar. Está bem que o Tour é uma prova muito dura, mas a malta lá acaba por chegar à meta. E depois há massagens, jacuzzi, os DVD nos quartos do hotel, umas ostras com champanhe, mordomias que os outros ciclistas não têm. Mas o Bernardo possuía uma zona muito negra dentro da cabeça dele.
“Quando julgamos que vivemos, estamos mortos. Vamos viver quando estamos moribundos”.
Estão a ver? Não eram coisas de que ele falasse durante as etapas, mas havia um aspecto perturbador no Bernardo. O Bocage também tinha umas telhas assim, mas em diferente:
“Meia-noite seria; eu passeando/No meu palmar chorava o meu destino/eis que ao som de um gemido repentino/Olho, e vejo uma sombra no ar girando”. E depois põe-se a perguntar “Quem és tu, Guirá? Quem és, ó Lémure malino?”. O Manuel Maria é danado para a borga, mas também tem um lado negro, como o Bernardo. E faz sempre uns poemas com uns nomes de gajas que... se faz favor! Não lembram nem ao Menino Jesus: Gertrúria, Elmira, Marília, Dido, Jónia, Ursulina, Nise.

Apesar do Bernardo ser o mais bem classificado da UCP no Tour, o Mário era incontestavelmente o melhor sprinter e rolador. Também era mais novo.
Por isso, ganhou logo a primeira meta volante, com 20 km de etapa corridos. E chegou lá com mais de um minuto de avanço em relação ao resto da malta, só pelo gozo.
Quando o pessoal passou, em pelotão, velocidade mais do que moderada, estava ele apeado, a “bater um couro” a uma miúda chamada Salomé: “Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua, alastra-se pra mim num espasmo de segredo...”.
O Pedro Mexia não foi de modas e atirou-lhe: “Ó Mário, olha que pode chegar o pai dela de um momento para o outro. Além disso, a miúda tem bigode. Vai-se a ver é uma portuguesa nascida em França”.
— Não és tu que dizes “a mais delicada colecção: os seres amados”? Então vai chatear um Pinguim de Magalhães!
Perto das duas horas de prova, um primeiro quarteto de favoritos alcançou o pelotão compacto da UCP. Eram eles os belgas Teddy Zerckx e Lucien Van Ímpeto, e os espanhóis Luís Ócalhas e Miguel InDurex.
— Ça va, les UCP? — sorriu Teddy Zerckx, que tinha a alcunha de “Canibal” por devorar os prémios todos e não deixar nada para ninguém.
— Ça va e não voltes. A gente vê-se na chegada. Porque é que demoraste tanto a apanhar-nos? Hoje não estás em forma, pois não? — provocou O’Neill.
Bernardo Soares repreendeu-o. Não houve tampo para mais. Aproximava-se uma descida vertiginosa, quando nada o fazia prever, depois de uma pequena elevação.
Cesário Verde era o melhor descedor do grupo português e conseguiu ganhar perto de dois minutos. Parou ao pé de um “bistrot”, mandou vir um Campari e pôs-se a recitar um dos seus poemas a um trio de reformados que estava a jogar à petanca no quintal:
“No campo; eu acho nele a musa que me anima: /a claridade, a robustez, a acção. Esta manhã, saí com minha prima/ Em quem eu noto a mais sincera estima/E a mais completa e séria educação”.
Vazou o Campari goelas abaixo e montou na bicicleta, agarrando de raspão a passagem, agora veloz, por via da descida, dos seus camaradas de equipa.
— Ó Cesário, o senhor bebeu alguma coisa no “bistrot”, quase de certeza... o que bebeu?
— Bernardo, acalme-se. Está com medo que eu ganhe a etapa e tenha de ir ao controlo?
E depois, la campagne c’est la campagne. Independentemente das montanhas a subir. O ar puro, a Natureza em todo o seu esplendor. É sempre um prazer.
Não é nada um prazer. Ainda agora começou a subida final e já estamos todos quebrados. Já não há ninguém atrás dos ciclistas da UCP. A nossa relação pessoal com os condutores do carro-vassoura é tão intensa que o Pedro Mexia até convidou um deles para padrinho de casamento, regado a Licor Beirão, na Lousã. O moço assolapou-se de paixões pela Chasey Lane (uma actriz de filmes de acção de série B) e diz que vai ser em Setembro, se ela não fugir com outro, até lá.
“Não podes tocar na porta verde/sem que fiques com as mãos verdes./Pouco te interessam o segredo das portas/e as adivinhações verdes,/mas a tinta fresca do mundo/faz-se em breve da cor da tua pele”.
Este poema do Pedro chama-se “Não tocar”, mas esteve para se chamar “Behind the green door”. Foi inicialmente dedicado a Marilyn Chambers, uma sua amiga dos tempos de liceu. Depois acabou por o enviar, num postal banal dos correios, para a Chasey, que se deixou cativar pelo espírito romântico do poeta. Depois do casal Lanche Armstrong/Cherry Crawl, Pedro Mexia/Chasey Lane eram a dupla mais perseguida pelos fotógrafos do Tour.
O primeiro elemento da UCP a chegar a L’Alpe D’Huez foi Teixeira de Pascoaes, com cinco minutos de atraso em relação ao último ciclista não-UCP.
Mirou e remirou a paisagem, deu alguns autógrafos e proferiu, em voz alta e decisiva:
— Isto aqui é um bocado parecido com o Marão.
Apareceu-lhe pelas costas (sem consequências) um jornalista da France 2. E disparou:
— Então, gosta do Tour?
E o “Demónio das Montanhas”, já abraçado pelo verdadeiro Diabo, o adepto suíço que não falha um Tour, respondeu, de rosto grave e honesto: “Eu amo a serra e o mar/Amo o bruto penedo, a branca nuvem,/As ondas, em seu líquido ansiar/Ou térrea densidade do seu êxtase...”.
— Je comprends. Mais... alors e o Tour?
— “Diante de mim, ressurge e se ilumina/ O sol turbado, escuro e sonolento./Onde ponho os meus pés,floresce a terra/brilha a luz,onde ponho o pensamento”.
O repórter francês encolheu os ombros e deixou Teixeira de Pascoaes a contemplar a Natureza. Os portugueses eram seres estranhos. Talvez não fosse grande ideia deixarem-nos participar no Tour de qualquer maneira, atravancando de pitorescos uma prova digna e respeitada em todo o mundo.

Pouco depois (volvidos 21 minutos e 15 segundos) chegou Luiz Vaz. Sem qualquer espírito trocista, Teixeira deu uma lata de Coca-cola a Camões e comentou:
— Pensei que chegasses um pouco antes.
Camões, exausto das últimas rampas, humilhado pelos aplausos que não paravam enquanto ele trepava aos ésses (piedade, nada mais que piedade, suprema humilhação, que tinham aqueles aplausos misericordiosos a ver com a admiração?), não compreendeu a crítica construtiva de Pascoaes e disparou, com maus modos, recusando a Coca-Cola:
“O esquivo desamor com que me tratas/converte em piedade, se não queres/Que cresça o meu querer e o teu desgosto”.
Hora e meia depois, chegaram os últimos ciclistas da UCP, nitidamente mais folgados.Bocage, O’Neill e Cesário Verde não pareciam nada cansados.
— Metemos o nosso passo. Amanhã há mais — disse O’Neill.
Finalmente, podia-se proceder à entrega do último prémio do dia. O troféu da combatividade. Vencedor: Bocage. Tinha andado à porrada com três ciclistas, dois homens que montavam as barreiras na meta, dois gajos da caravana publicitária que eram casados com mulheres boas e um empregado de café desempregado que tinha deixado escapar um comentário ao penteado do poeta.
Na tenda da equipa belga, Teddy Zerckx fazia jus à alcunha de “Canibal” e deglutia descansadamente um peito de uma das meninas do pódio, junto do seu amigo Peter Greenaway.
— Ó Teddy, eles não vão dar pela falta da miúda, no pódio de amanhã? — inquiriu o cineasta.
— Qual quê!?! Pensam que ela está com o poeta português.
— Qual deles?
— O mais ordinário de todos, nom de Dieu!
O mais ordinário de todos, nom de Dieu, era, obviamente, Bocage. Que tinha levado consigo outra menina do pódio, a que lhe dera os beijinhos da praxe na altura da entrega do prémio da combatividade.
— Venha daí dar uma volta comigo. Já estou farto desta Volta à França. Prefiro dar-lhe a volta:
“Não sou vil delator, vil assassino,/Ímpio, cruel, sacrílego, blasfemo;/Um Deus adoro, a eternidade temo,/Conheço que há vontade, e não destino/(...) Mas folgo e canto/ e durmo nos teus braços”.
A menina do pódio suspirou e bateu as pestanas na direcção do olhar de gavião do vate ordinarão, do génio mais obsceno a Oeste de Pecos. O casal espontâneo refugiou-se atrás de um camião das equipas a sério e Bocage fez o que tinha a fazer, sem remorsos ou preconceitos.
Só então, concluído o trabalhinho, reparou em Jorge de Sousa Braga, parado, mais imóvel do que um rochedo sonolento, a olhar em frente.
— O que é isso, ó Jorge? Adormeceste?
— Nem por isso. “Sempre me intrigaram esses lagos de montanha alcandorados nas nuvens. É como se fossem gigantescas taças de orvalho que as montanhas erguessem para brindar a cada novo dia”.
Bernardo Soares andava verdadeiramente desesperado, a tentar juntar a equipa. Era importante sob todos os pontos de vista. Havia necessidade de fazer fotos para recordação, para futuro currículo, para ilustrar uma reportagem de fundo para o “L’Équipe”, que mais tarde seria publicada sob o título: “UCP, a equipa portuguesa que não sabe pedalar”.
Quanto mais se esforçava, mais parecia que os ciclistas se dispersavam, como aviões de uma esquadrilha acrobática: juntavam-se, afastavam-se, faziam cabriolas e desapareciam nos céus.
Agora tinha desaparecido o Cesário Verde, a contas com uma serenata improvisada a uma moçoila de Paris que tirava férias em Julho para vender tremoços no Tour:
“Milady, é perigoso contemplá-la/Quando passa aromática e normal/Com seu tipo tão nobre e tão de sala/Com seus gestos de neve e de metal”.
— Ó Monsieur, ou me compra os tremoços ou desampara a loja!
“Bah! Está verde”, pensou Cesário.
Correu. Toda a gente à sua espera. A UCP formada, sorrisos ao alto, no alto dos Alpes. O fotógrafo do “L’Équipe” a disparar incessantemente. E o Bernardo para o redactor:
“Quando é que sai? É na revista dos fins-de-semana? Depois avisem. Ou mandem uma para Lisboa. É que se paga mais pelo jornal, mas a revista não chega. Porquê? Já desisti de perceber. Até parece que Paris é muito longe de Lisboa. Vejam lá se dizem bem da malta. A equipa está agora a começar. Somos amadores, mas gostamos muito de ciclismo. A literatura é uma paixão, mas o ciclismo já faz parte integrante das nossas vidas. Quer dizer, as nossas vidas têm agora duas dimensões”.

...a luxúria japonesa de ter evidentemente duas dimensões apenas...
(“Livro do dessassossego” da 4ª edição da Assírio e Alvim, algures entre as 534 páginas)

A luxúria das montanhas mágicas, com os heróis a subir a direito, que o Olimpo é sempre em frente. Os heróis dos músculos retesados e corações generosos. Os heróis que são tão heróis como os heróis da pluma, que me enchem o coração de musculações afectivas.


Foi você que pediu um Bernardo Soares?

Von Grazen, 18/7/2004 05h15m

Apoio: “Make your own fun” (Gary Foster) e “Young lions and old tigers” (David Brubeck). Duas passagens cada.

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