15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, janeiro 07, 2007

A hidroginástica não é para senhoras

A convite do seu Criador, o grandiloquente Fernando António, Sua Excelência o heterónimo Álvaro de Campos resolveu iniciar-se nas artes científicas da hidroginástica, uma disciplina com os seus quês de imersão.
Fernando António era sócio de mérito do “Dissolves Place”, pelo singelo motivo de não ter falhado uma única aula de hidroginástica desde a abertura do clube. E sendo deste modo as cousas, ganhara uma medalha de mérito desportivo demolhado e o direito de convidar um amigo de 15 em 15 dias. Assim como o “Dissolves Place” frequentemente promovia sessões de Open Day (como o nome indica, um dia consagrado às actividades para sócios e não-sócios), também organizava iniciativas específicas de hidroginástica, denominadas de “Open Tanque”.
Chegara então a vez de convidar o seu grande amigo Álvaro de Campos, um dos heterónimos da criação de Fernando António, com quem vivera já muitos períodos de intensa alegria e também bastas desilusões de carácter literário e vivências sortidas, que estas cenas não se controlam. Era bom, era...
À las doze del médio dia (é assim que dizem nuestros brothers, obnubilando-se, por obséquio, alguma falha ortogonáfrica, não liguemos a coisinhas miúdas) Fernando António e Álvaro de Campos chegaram à recepção do “Dissolves Place”, uma hora antes do início da aula.
Convém dizer que as aulas de hidroginástica tinham um limite de sócios-imersores, como fatalmente teria de ser, caso contrário qualquer aula se transformaria facilmente em suruba neptuniano de contornos politicamente duvidosos.
Um sorriso radiante (todos os recepcionistas tinham sorrisos radiantes, era norma da casa) esperava pelos dois amigos no marmóreo “hall” de Carrara.
— Então, Sr. Fernando, era uma senhazinha para a hidro, para variar...
— Desta vez são duas, Prudência. Uma é convite para o “Open Tanque”.
— Ai, este senhor é muito parecido consigo. Se me permite a pergunta, são familiares?
— Este senhor é o Álvaro de Campos. É como se fosse meu irmão. Já palmilhámos muito por este país. Homem sério e recheado de méritos. Hoje vem experimentar a hidroginástica.
— Faz o senhor Álvaro muito bem. Vai ver que se sente logo outro mal saia da água.

(Numa bichanada aos leitores, coisa rápida, já se vê, que o conto ainda vai no adro, podemos dizer que com o Nogueira Pessoa não havia problema nenhum em construir o Outro)

O cartão “Dissolves Place Very Special Gold Platinum” passou dos dedos finos e habituados à escrita de Fernando António para os dedos sensuais de Prudência, uma ruiva de olhos verdes, que augurava tempestades de intercâmbio de carnes a quem fosse bafejado pelos ventos da fortuna.
Foi também através da intermediação dos dedos de Prudência que duas senhas de hidroginástica transitaram do cofrezinho da recepção (todas as senhas estavam fechadas em cofres) para as mãos de Fernando António e Álvaro de Campos.
Fernando António tinha direito a senha personalizada, com a sua foto. Álvaro de Campos recebeu uma senha a dizer “Dissolves Place Guest”. No verso tinha uns dizeres de boas-vindas. “Olá, estamos ansiosamente à espera do seu sorriso todos os dias. Há caracóis. Não se fia”.
A passo lento e literário, começaram a dirigir-se para os balneários, que se situavam dois pisos abaixo, num “bunker” à prova de vendedores de flores e arrumadores toxicodependentes.
— Olha lá, o que é que eu faço com isto, agora? — perguntou Álvaro de Campos, a estranhar o “Dissolves Place”, como quem se deita pela primeira vez numa cama que não é sua.
— Então, está bem de ver. Agora dás a senha à professora de hidroginástica.
— Então não se podia ir para a aula sem senha? Tu já passaste o cartão na entrada...
— Claro que não. Vê-se mesmo que não percebes nada de clubes finos. As aulas de hidroginástica têm um limite de imersinhos. Só dá para 250 de cada vez, que a piscina não é grande.
— Por acaso estou um bocado curioso. E também te confesso algum nervosismo.
— Não te preocupes. Sabes nadar?
— Não faço ideia. Não referiste esse pormenor no meu currículo?
— Olha lá, tu tens de andar com a cabeça no sítio. Se eu fosse a saber da vida de todos os heterónimos era chefe de Redacção da “Caras” ou da “Lux Woman” ou da “Flash”.
— Não me lembro, pá. E tu também devias ter atenção a estas coisas. Afinal, eu não sou um heterónimo qualquer. Faço parte dos heterónimos de estimação.
— Mas tu pensas que és mais que o Robert Annon ou o Jean Seul de Méluret?
— Estás para aí a atirar-me como nomes para ver se me baralhas. Esses heterónimos nem sequer existem...
— Por acaso existem. Só para não te armares em esperto.
— Então diz lá quem são.
— Agora não tenho pachorra para te aturar. Ainda temos de nos equipar, fazer sauna, banho turco e tratar das unhas, antes de ir para a hidroginástica. Olha lá, trouxeste touca?
— Touca? Qual touca?
— Olha, uma touca de cabeleireiro! Porra para o homem, parece que é estupidozinho da carola! Não podes entrar na água sem touca. Eu disse-te para trazeres uma touca.
— Não disseste, não senhor.
— Pronto, se não disse...não disse. Mas devias saber que em todas as piscinas é preciso touca.
— Tu é que crias os heterónimos. Tu é que deves tratar de tudo.
— Olha lá, mas tu pensas que eu sou o teu pai? Também queres o rabinho lavado com água de rosas?
— O rabinho lavado com água de rosas dispenso.

(Ainda a título meramente especulativo, fala-se que o “Dissolves Place” tem a intenção de criar uma actividade em que o rabinho dos sócios é lavado com água de rosas. A actividade chamar-se-ia “Rose Water Clean Ass”)

Já nos balneários, Álvaro de Campos insistiu com Fernando António. Um criador de heterónimos é um verdadeiro pai literário. Responsável por tudo o que lhes acontece. Obrigado a uma omnisciência divino-literária, sob pena de cair do Olimpo dos génios para a Chelas da escrita.
Fernando António tirou do saco de desporto (comprado no “Dissolves Place”, em tons de rosa-choque e doirado) um cadeado doirado e verde-alface. Álvaro de Campos ficou a olhar para ele, espantado. Fernando António mirou-o de alto a baixo, teve um lampejo de clarividência e desabafou:
— Não me digas nada. Também não trouxeste cadeado?
— Eh! pá. Desta tenho de fazer mea culpa. Lembro-me de me teres avisado.
— Noutro dia até podias ficar com as coisas aqui no meu cacifo privado. Mas ontem trouxe para cá uma colecção de fotos pornográficas da Ofélia e uma colecção de miniaturas da Solido e da Corgi Toys.
— Então e agora?
— Agora vais à recepção e pedes um cadeado dos mais baratos. Diz para meterem na minha conta. Depois pago com um poema. Pode ser aquele que é assim: “Gato que brincas na rua/Como se fosse na cama,/Invejo a sorte que é tua/Porque nem sorte se chama”.
— Isso é muita mau. ‘Tá bem que estes gajos têm uma quotas caras, mas também não é preciso descer o nível a este ponto. Estás a ser ordinário.
— Vê lá se queres levar uma lamparinada nas trombas. Em primeiro lugar, tu é que te esqueceste no cadeado. E depois o poema está publicado na colecção da Ática, que formou muita gente por este país fora.
— Eu sei que és bom, meu, mas deves reconhecer que há coisas más na tua obra. O conto do Hemingway com um gato também é uma tanga.
— Qual conto?
— “Um gato à chuva”. É o gajo a ver um gato à janela, está a chover e depois o gato vai-se embora.
— É só isso?
— Pelo menos é do que me lembro.

(A memória prega-nos partidas. Mas já se constatou que o Campos tem má memória. Esquece-se de toucas e cadeados, por que diabo não se havia de esquecer de um conto de Hemingway a rasar o banal? O conto “Um gato à chuva” ocupa as páginas 115 a 119 do livro “As torrentes da primavera, seguido de Um gato à chuva”, Livros do Brasil. Fala de um casal de americanos de férias em Itália e a chavala quer ir buscar um gato que está na rua a molhar-se. E acaba assim: “A criada surgiu à porta. Apertava nos braços um enorme gato, cinzento como uma carapaça de tartaruga.
— Queiram desculpar. O patrão mandou-me trazer isto para a Signora.)

Álvaro de Campos dirigiu-se à recepção e escolheu um cadeado posto recentemente à venda no “Dissolves Place”. Um modelo barato (apenas 133 euros e um cêntimo), com duas assoalhadas e casa de banho privativa. Com um nome sugestivo “Proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”. Na compra de dois cadeados, bónus de uma embalagem de Ketchup Light.

Álvaro voltou ao balneário e Fernando António já envergava uma touca cor de malva e uns calções da famosa marca aquática “Ardenas”. Modelo Verão 2006/2007. Um padrão discreto, com muito êxito: Safari. Castanhos e pretos às risquinhas, com uns olhos verdes de pantera a espreitar por cima de cada testículo.
Álvaro quedou-se por uma opção mais discreta. Uns calções pretos de marca branca, com elástico flácido e ar de quermesse de Natal.
— Por tua causa já não temos tempo de ir à sauna, ao banho turco e às unhas. Vamos já directos para a piscina. Não te esqueças do código do cadeado. Agora vê lá se também se te esqueces de um código com dez algarismos — bradou Fernando António, a destrambelhar-se de desatinos com o Campos.
Os cadeados do “Dissolves Place” eram uma coisa a sério. Com um código de dez algarismos era muito mais difícil a um sócio mal intencionado locupletar-se com o produto de um esbulho. Fernando António ficou no seu cacifo privado (número 666) e Álvaro de Campos estacionou no adjacente leste.
Percorreram em silêncio os 600 metros de curvas e contracurvas do balneário, no caminho para a piscina. O vapor de água gemia obscenidades em dolby stereo, sussurrando às imaginações mais delirantes jogos de dominação, discussões sobre o futuro de Portugal, quedas em decúbito dorsal, amizades florescentes a caminho do banho.
— ‘Tão? Tudo bem? — saudou Fernando António um sujeito forte, espadaúdo, bastante bronzeado, de cabeça grande, que lhe fungou qualquer coisa imperceptível com um ar amigável, mas ainda assim preocupado. Talvez frustrado fosse o termo mais correcto para descrever o seu estado de espírito.
Quando o corpanzilóide se afastou, Fernando António piscou o olho a Álvaro e perguntou-lhe:
— Não reconheceste?
— Osborne?
— Não, estúpido. Era o Minotauro. Anda à procura da saída desde a última aula de hidroginástica, a semana passada. Os sócios têm-lhe dado umas barras energéticas, o Andrew arranja todos os dias um farnel de ração. O gajo anda por aí até atinar com o caminho certo.
— Não era mais fácil vir um empregado e levá-lo para a saída?
— Isso dizes tu. O gajo é susceptível. Tem um mau feitio do caraças. Parece que armou um ganda banzé numa discoteca de Creta, com amigos, há uns anos. Todos levaram nos cornos.

Os sinais de piso escorregadio multiplicavam-se pelos túneis dos balneários, mas mesmo assim vários sócios se contorciam em agonia, enquanto as sirenes da emergência médica se ouviam, provenientes da recepção, num vaivém assistencial louvável.
Caído numa das últimas curvas antes de chegar à piscina estava José Láchego.
— Então, ó Láchego?
— Não se preocupem. É entorse sem derrame. Daqui a dois dias já estou a dar-lhe nas bicicletas. Resisti às torturas da PIDE, não são estes balneários que me vão quebrar.
— Estimei vê-lo. As melhoras. Este aqui é o meu amigo Álvaro de Campos.
— Muito prazer. É uma pessoa com muito talento. O meu camarada Manel Eufórico já me recitou uns poemas seus. Gosto particularmente daquele que é assim: “O descalabro a ócio e estrelas.../Nada mais.../Farto.../Arre...”.
Fernando António gostou de sentir o ego afagado e agradeceu em nome de Álvaro de Campos.
— És muita cabrãozinho. Eu sei que tu é que escreves os poemas, mas se não resolves assinar e me concedes a autoria, o mínimo é que me deixes agradecer os elogios em público — protestou Álvaro, amuado.
— Vê lá se atinas. Heterónimos tenho eu ao quilo. Heterónimos e gajas. Porta-te mal e eu ponho-te a trabalhar no McDonalds. Para não dizer: “Ó seu grandecíssimo e alternadíssimo camelo, eu dessincronizo-lhe as trombas e arranjo-lhe um lugar no desemprego”.
— Isso é do António Silva. Não me lembro é do filme.
— Eu gramo à brava do “Leão da Estrela”.
— Pois é. Um bálsamo para a alma. O Sporting avia sempre o FC Porto, cada vez que vejo o filme.
— Não te rias muito. Ouvi dizer que o Pinto da Costa já está a conspirar com o Manoel de Oliveira. Vão fazer um “remix”, uma versão exclusivamente em “slow motion”. As bolas levam tanto tempo a caminho da baliza que nunca se chega a ver um golo do Sporting. Conheces a teoria do filósofo Zenão de Eleia? Aquele que diz que não há movimento?
Vinte minutos depois, Fernando António e Álvaro de Campos chegaram à piscina, onde 127 sócios já estavam a aquecer dentro de água. A senhora Amália, de xaile preto, vendia binóculos aos associados e apregoava o seu produto em ritmo de fado:
— Olhó binóculo fresquinho! Olhó binóculo fresquinho! Dá sempre jeito! Dá sempre jeito!

E dava. A piscina do “Dissolves Place” da Rua 32 de Outubro (a entrada era pela Rua Miguel Canhões, mas a designação formal era a da Rua 32 de Outubro, vá lá perceber-se as mulheres...) era jeitosa, com 100 metros de comprimento por 30 de largura e uma profundidade de 5 metros e 20, para que ninguém se sentisse inibido.
Não se podia mergulhar estilo “Arrefinfa-neles”, “Aqui-vai-disto”, “Flipper” e “Maralhal Encorpado”. Também havia multas para quem urinasse, defecasse ou ejaculasse na água. Cuspir também não era bem visto, mas constituía uma lacuna legis do regulamento do clube, por isso havia sempre quem aproveitasse para aviar uma escarradela, enquanto a situação não era corrigida:
— Sai lagosta ao preço!
E toma lá fresquinho, com a viscosidade verde-feijãozinho a navegar pelos 100x30 metros do rectângulo aquático.
— Anda, temos de tomar um duche e ser fustigados 30 segundos por um chicote de tungsténio da última geração — proferiu, seráfico, Fernando António.
Os dois amigos passaram sucessivamente pelos duches “Bacanal” (bastante quente) e “Nice” (bastante frio), depois foram fustigados durante 30 segundos por um chicote de tungsténio da última geração, nas mãos sábias e compadecidas de Terezza Ripa-Holmes.

(Explicação científica: o fustigarium com chicotes de tungsténio é óptimo antes da imersão numa aula de hidroginástica. Provoca um fluxo de termo-acumuladores neuroniais, titila suavemente o ventrículo esquerdo em jactos de hidrofatelose, depois obriga o organismo a adaptar a sua temperatura ambiente ao ar condicionado da sua condição psicossomática, ou psicodimunitiva, conforme a constituição do indivíduo e a posição do parto).

Entraram na água em boa altura. A anaconda que matara por constrição (e não fizera nenhum acto de contrição depois da marosca do enrosca) cerca de uma trintena de associados (na última semana) tinha sido finalmente cercada pelas forças de intervenção aquática. Cinco minutos depois foi retirada em braços, a vociferar:
— Vão ter notícias do meu advogado. E podem esquecer os esquemas do “Feel Fit! Feel Light”. Eu tenho um personal trainer sexual, não preciso do “Dissolves” para nada. E as imersinhas estavam cheias de celulite. Vão ter notícias do meu advogado!
— Há gente que não se sabe comportar — disse Fernando António, com mais compaixão do que desdém.
Dez minutos depois de um saudável chapinhanço que agradou sobremaneira ao “rookie” Álvaro de Campos, a professora Joana irrompeu na piscina com um megafone:
— Sai de cena quem não é de cena!
Dois reformados que estavam a jogar à bisca lambida a bordo de um sofá pneumático abandonaram a piscina, um tanto contrariados, assim como um esquimó especialista em Física Nuclear, uma artista de circo que preparava um doutoramento em Literatura Americana e um elemento dos La Fura del Baus.
A professora Joana usava um top preto escuro e calcinhas tipo licra, da mesma cor, mais apertadas que o elevador de Santa Justa. Os ténis eram de molas insufláveis. Puxou o cabelo para trás e apanhou-o em rabo de cavalo. No caso, puro-sangue árabe. Tinha ainda em pleno centro do umbigo um elegante piercing-espiral, que lhe dava ainda maior brilho. Podia-se mesmo dizer que a professora tanto podia aclimatar-se à piscina do “Dissolves Place” como aos canais de Veneza. Embora cheirasse bastante pior nos canais de Veneza e Joana preferisse paragens exóticas, como a Tailândia, para passar o Carnaval.
Dirigiu-se ao DJ Juka Box e indicou-lhe o estilo de música que queria para a aula de 45 minutos.
— Boa tarde, Juka. Hoje vamos começar com “Lady Marmelade” e acabar com “Norah Jones”, na fase em que eles estão nos exercícios dos patinhos, para ir para a caminha. Não quero nada mais hip-hop, como a Carla usa de vez em quando.
Precisamente nessa altura, Carla Gonçalves entrou na piscina, sacou o megafone das mãos de Joana e gritou:
— Máximo! Máximo! Máximo!
Uma série de imersinhos começou a mexer-de dentro de água em grande velocidade, mas Joana mandou parar. Tinha sido um equívoco. Carla estava apenas a chamar um amigo, de nome Máximo Conti.
— Tens uma chamada telefónica na recepção. Posso dizer que atendes dentro de 15 minutos?
— Isso é muito apertado. Dá-me vinte minutos, para ir a correr com calma.
— Este gajo é o Máximo — disse Fernando António para Álvaro.
— Já tinha percebido — respondeu o heterónimo do ortónimo.

A aula estava prestes a começar. Mas antes disso era preciso controlar as senhas de presença, que estavam dispostas no banco de ripas madeiradas ao longo dos 100 metros de comprimento da piscina. Ao lado, toalhas desmaiadas amorteciam-se de fleumas.
Joana começou a apontar para as senhas e a perguntar:
— De quem é esta senha? E esta?
Os imersinhos usavam então os binóculos anfíbios vendidos pela D.Amália, presos ao peito por uma tira de bom cabedal (também vendida a 50 euros no clube). Lá se iam acusando.
Meia-hora depois as coisas estavam quase terminadas. Mas há sempre um mas.
— Desculpem, mas eu só tenho aqui 250 senhas e estou a contar 251 pessoas na água. Não posso começar. É muito aborrecido, mas tem de ser assim, por uma questão de ética e deontologia aquática.
Um sujeito baixinho, de olhos papudos e tez amarela, começou a suar frio e a ganir. As forças de intervenção aquática perceberam imediatamente quem era o infractor e arpoaram-no com um dardo limitador de insubordinações, importado de Los Angeles. O malandro foi retirado da água hirto e firme que nem uma barra de ferro. Já não era a primeira vez que Alexadrino do Oz tentava entrar na aula de hidroginástica sem senha.
— O que vai acontecer-lhe? — inquiriu, curioso, Álvaro.
— Provavelmente abatem-no. Ou então é convidado para um programa de televisão — respondeu Fernando António.
Juka Box fez soar os primeiros acordes de “Lady Marmelade”. Joana já tinha instalado o microfone individual.
— Experiência: Bruxelas, Estocolmo, Danone de pêssego... fuuuu... está a funcionar... todos me estão a ouvir bem?
— O quê?!? — perguntou um pianista alemão de nome Beethoven, fanático da hidroginástica e dos discos de Mozart.
— O meu nome é Joana. Bem-vindos à aula de hidroginástica. Está aqui alguém pela primeira vez?
Álvaro de Campos levantou o braço. Joana falou para todos, mas com especial incidência no novato.
— Podemos fazer uma aula mais puxada ou mais empurrada. O mais importante é manter o calcanhar no chão, como muito bem executa o senhor Aquiles. É muito importante para não forçar os gémeos Castro. Tronco direito, peito para fora, barriga para dentro, nada de piscar o olho às miúdas, moderar nos pirolitos, não esquecer de respirar de vez em quando, obedecer aos pais, respeitar os superiores.
Como o nome indica, a hidroginástica é ginástica para engenheiros hidráulicos, executada dentro de água, sem grandes engenharias corporais. Mas hoje em dia o conceito alarga-se a todas as pessoas e aos políticos.
Vão ter de me dizer os vossos 250 nomes, para ver se eu já consigo identificá-los no final da semana. Já fixei o Luís, que se porta sempre bastante mal e ainda não se afogou, apesar das promessas e o estilo boçal com que se relaciona com o meio aquático.
O senhor novo... sim... Álvaro, não é?... desculpe, não pode fazer a aula com esse chapéu na cabeça... pois, eu percebo que é o chapéu que usa sempre quando está sentado na brasileira, mas a sua vida sexual não pode interferir com as minhas aulas... pode dar o chapéu a um dos 30 empregados de limpeza que andam aqui à volta da piscina, nas pausas da venda de droga aos sócios... eles levam para o bengaleiro e recolhe o chapéu à saída, por apenas 5 euros.

Motores em marcha, 500 mãos e pés em movimento, a aula de hidroginástica já não era possível de parar.
— Leva o joelho ao peito, puxa bem... (Joana dixit).
Aconteceu logo a desgraça. Álvaro de Campos deu uma joelhada no peito de Fernando António.
— Estúpido! Leva o joelho ao peito, mas é em ti...
— Chuta! Chuta! Chuta à frente! (Joana dixit).
Um toxicodependente não resistiu ao convite, tirou a seringa de dentro dos calções, preparou o ‘caldo’ e mandou para a veia. A brigada interveio e levou o sócio janado para fora da piscina.
— Mas foi a Joana que disse! Mas foi a Joana que disse! Perguntem-lhe! Perguntem-lhe!
— Passa a esqui! (Joana dixit).
Um italiano de nome Alberto Tomba começou a rir-se às gargalhadas, de forma completamente louca.
— Passa ski! Si, má ké bello. Passa ski. Veramente bella!
A meio da aula, falhou uma porta de passagem e foi desqualificado.
— Porca miséria!
— E agora polichinelo! Grande! Abre bem os braços. Meninas, fechem bem as pernas. Há 250 pessoas dentro de água. A brigada não consegue controlar toda a gente. A hidroginástica não é para senhoras. Há aqui alguma grávida? Não? Tenham cuidado, pode haver no final da aula.
Agora circula à volta da piscina. Vem em passo de corrida, buscar o material. Não pára nunca, para o coração não sentir o choque.
— Phoda-ze que esta merda é puxada! — desabafou Álvaro de Campos.

(Desculpem. Não foi possível retirar esta frase antes de ir para a gráfica. Tem a ver com os processos de produção. Não é por medo de censurar o autor, esse palhaço às riscas)

— Não é nada puxada. Puxada é a RPM e o Pôncio Pilatos — disse Fernando António.
Nessa altura, na hora de ir buscar o material, Fernando António fazia sempre uma pausa para Kit-Kat e um bagacinho. Saía da piscina, dirigia-se à ‘pochette’ que deixara junto da toalha e mamava-lhe com gente grande.

(Questiona-se filosoficamente se Pessoa era gente realmente grande. A altura verdadeira de Fernando António Nogueira Pessoa não era lá grande coisa, mas como escritor foi enorme. E como vulto da cultura portuguesa até faz sombra ao Marão).

— Senhor Fernando, cuidado com o bagaço! Ainda dá cabo de si. É bastante contraproducente no meio da aula... (Joana dixit).
— Engana-se, minha senhora! A água é que dá cabo de mim. Ainda se fosse água-pé, agora esta água, em que nem tenho pé... deixe-me que lhe diga uma coisa: quando manda fazer os exercícios em suspensão... isso é promessa ou quê? Deve ser a gozar! Então a piscina tem mais de cinco metros...
— Sabe, a piscina estava planeada para 1 metro e 20, mas houve um anão que protestou e disse que era muito profunda. O administrador do clube em Londres embirrou com o anão e disse: “Ai é? Então agora vai ficar com 5 metros e 20, para o gajo aprender a mandar vir!”.
— Então e agora? O anão não se fez sócio?

(Não, efectivamente o anão não se fez sócio. Hoje em dia, Toulouse-Lautrec é mineiro, à noite regressa a casa, pelo meio da neve, com mais seis companheiros de trabalho e faz ginástica com a menina Branca).

— Vamos, cada um leva um esparguete e vai até ao outro lado da piscina! (Joana dixit).
— Já começo a perceber para que são os anúncios do Ketchup Light no átrio do clube. Este esparguete também é leve como o caraças. É pena só haver em cinza e rosa...
— Deixa lá isso, Álvaro. Concentra-te. Descontrai. Aproveita a aula.
— Eu gramo é as gajas. Olha aquela ali, de fato vermelho, a fazer-me olhinhos.
— Ó Álvaro, deixa lá a Pamela Anderson.
— Como é que sabes que é a Pamela Anderson? Sabes lá se é loura. Está de touca!
— Não vês que num raio de cinco metros não há ninguém à volta dela, por motivos de espaço?
Joana mandou toda a gente passar a esqui.
— Vira para a luz! Vira para o jacuzzi! Vira para a frente! Vira para o material!
Nesta fase da aula, as mulheres viravam-se mesmo para a zona onde o material estava guardado (esparguetes, aquafit, halteres), os homens viravam-se para Pamela Anderson, o que provocava sempre confusões, afogamentos e ataques cardíacos.
— Agora uma novidade. Vamos usar halteres, esparguete, aquafit e colheres de pedreiro, tudo ao mesmo tempo!
Fernando António ficou desconfiado e sussurrou para Álvaro:
— Esta das colheres de pedreiro leva água no bico. Vais ver que ainda nos cravam para construir mais um “Dissolves Place”. Estão a crescer como cogumelos. Olha, o Luís até esteve a dar autógrafos no Quintal da Loura, ao pé do autódromo do Terroril.
— Esse gajo escreve alguma coisa de jeito?
— Tem dias. Olha, aqui já vai em 24 mil 842 caracteres, só neste conto.
— Contando com a tua última fala?
— Não, sem a minha última fala.
— Mas o gajo ganha à linha?
— Não, isso era o Eça de Queiroz.
— Esse gajo escrevia melhor do que o Luís, não era?
— Isso é muito discutível.

Tudo tem um fim. Até mesmo uma aula de hidroginástica. Depois toda a gente segue até ao jacuzzi. É a hora da intimidade e das confidências. Álvaro de Campos não resitiu, pôs-se de pé e declamou:
— Ora até que enfim... perfeitamente... cá está ela! Tenho a loucura exactamente na cabeça. Meu coração estoirou como uma bomba de pataco, e a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima... graças a Deus que estou doido!
Fernando António, muito enfadado:
— Já acabou, ó heterónimo?
— Não, acabou foi o conto. O poema acabava em “ Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o. Com esforço, mas era para bom fim. Ao menos era para um fim. E assim como sou não tenho nem fim nem vida...”.
— Isso é um bocado Monty Python.
— Pois claro que é. Por que é que pensas que eu gosto de Fernando Pessoa?