15 desatinónimos para Fernando Pessoa

terça-feira, março 06, 2007

É grave, Doutor?

Um céu salpicado de estrelas é sempre uma dádiva divina. São assim as noites de Agosto em Fontão Fundeiro. Não conhecem? É uma pequena localidade perto de Figueiró dos Vinhos, uma ilha de bons ares, cercada de verde por todos os lados.
As águas recomendam-se e a fauna está boa, obrigado. Os javalis telefonam regularmente a um sujeito gordinho que caiu no caldeirão da poção mágica quando era pequeno, as raposinhas de orelhas espetadas atravessam a estrada de madrugada, em rodopios de Manolete, a dar olés aos carros que aderem ao programa rodoviário de curva e contracurva.
Vêem-se estrelas a cair dos céus, rasgões de branco no azul-escuro de uma pureza atroz. A beleza é tanta que dói na alma e o frio húmido dessas noites de Agosto entranha-se matreiro nos nossos corações.
Richard King, médico de formação, desviado para a veterinária por causa de uma visão nocturna, era um homem maduro. Cumprira recentemente o meio século de existência e nesse dia deu-se ao luxo de não fazer a barba.
Festejou com duas velinhas numa tachada de arroz doce, feito pela prima Viridiana, moradora numa casa de Figueiró que tinha pertencido ao pai do grande Malhoa pintor, parente afastado da cançonetista Ana Malhoa. A prima Viridiana era casada com Agostinho Single-Malt, um homem que apreciava os vinhos sem marca e whisky Monks, entre outros. Não se estranha, pois, que a tacahada de arroz doce tenha sido acompanhada a líquido da Escócia.
À falta de canela ficou o arroz doce festivamente coberto por confeitos. Não conhecem? Aquelas coisinhas de pôr nos bolos de aniversário. Pequenas pérolas prateadas, que os putos trincam garbosamente na flor da dentição. Especificando: as bolinhas prateadas são cientificamente designadas por pérola prateada. Ainda existem a missanga decorativa e a mistura decorativa. Tudo isto em pequenos frasquinhos da marca Globo, qualidade e distinção, embaladores e distribuidores “A colmeia do Minho”, Quinta da Cucena, Paio Pires, Seixal. Agostinho Single-Malt polvilhara a tachada de arroz doce com confeitos das três espécies e Richard King nem deu pela falta da canela.
— ‘Bora aí à adega do Ti Campelo — desafiou Agostinho, deglutindo o arroz doce e terminados os festejos oficiais do aniversário.

O Ti Campelo era o fornecedor da pomada do Agostinho (o tintol), sempre abastecido por garrafões brancos com a sigla AFS, que não se sabe muito bem de onde vinha. A de Agostinho, F de Felismina (dizia a bruxa da terra) e S de Simeão (dizia toda a gente). Mas não era certo que todas estas considerações ultrapassassem a mera conjectura.
Agostinho meteu toda a gente no Suzuki Samurai Pick Up 4x4 de cor branca e abalaram até à adega do Ti Campelo. Chovia um cochinho. Agosto recheado de desculpas esfarrapadas de Verão.
— Quando chove, nem pràs hortas, nem prà praia. Fica toda a gente a roçar o cu pelos cafés e a dizer mal do tempo --- desabafou Agostinho, a espiolhar a estrada, enquanto o pára-brisas dançava um tango binário no vidro frontal do Samurai.


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A adega do Ti Campelo era uma cave tipo bunker, com garrafas de garrafões por todo o lado.
— Tenho ali um garrafão do melhor para o PCP. Desculpa lá, esse não to posso vender — dizia sempre o Ti Campelo, que nem era comunista. Mas o Pedro Carvalho Pereira era amigo da família há muitos anos e merecia um tinto de excepção.
O Ti Campelo também tinha garrafões reservados para o CDS-PP (o jovem casal Carlinha Daniela Silva e Paulo Piteira), o PPD-PSD (um casal gay composto por Porfírio Pintado Deusdado e Policarpo Saraiva Dinarte), o PS (Perestrelo Soares) e o BE (Bernardo Esperança).
A adega do Ti Campelo era do mais castiço que havia e representava o expoente máximo de uma adega de província que se preze. Nas paredes, pendurado em lugar de destaque, um cachecol do Benfica.
— O Glorioso já não é o que era, mas o meu coração continua tinto e ensopado de angústias, sempre que joga o Benfica — suspirava-se de ais o Ti Campelo, que ainda vira o Eusébio a marcar golos na Luz.
Claro que adega a sério implica um calendário de gajas como deve ser, nem que seja para meter inveja à oficina dos bate-chapas. E o Ti Campelo possuía um calendário à maneira, com duas louras bem nutridas de mamalhal à mostra, a lavar um carro de luxo. Calções de ganga, esponjas na mão, espuma por todo o lado, traseiro pormetedor bem espetado, sorrisos para a foto.

Ao lado, uma gravura a fazer publicidade a um bar inglês. Sherlock Holmes a segurar numa cerveja e a mandar uma boca qualquer ao Dr.Watson. Via-se o letreiro de Baker Street, para evitar confusões e conferir credibilidade à cena.
Agostinho Single-Malt queria demorar-se o menos possível na adega, mas o Ti Campelo aproveitava a presença de Richard King para dar a provar uns licores e uns biscoitinhos, desfiar umas memórias, activar as tábuas sagradas da hospitalidade.
Só conseguiram sair perto das seis da tarde. Vá lá que o céu abrira.Ainda dava para chegar à quinta do Ti Ernesto.


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— Graças a Deus chegou, Dr. Richard! Isto está mesmo mal...
— Calma, Ti Ernesto, a gente vai já ver o que têm as vacas — sossegou Richard King.
Foram para os terrenos de pasto, onde ruminavam as herbívoras do Ti Ernesto, que sabiam mugir em vários tons, conforme o estado de espírito e as condições climatéricas.
— Abre a boca e diz aaahhh!
Espátula em riste, Richard apontava a lanterna às amígdalas, apalpava o pescoço, puxava a pele por baixo dos olhos e observava se estavam amarelados. Auscultava as vacas de lado, analisava o estado dos cascos, espreitava para dentro das orelhas, passava a mão pela cauda.
Parecia tudo normal.
— Não noto nada, Ti Ernesto. Isto deve ser coisa psicossomática.
— Elas têm andado tão tristinhas, Dr. Richard!
— Então e a música? O que lhes tem posto?
É que o Ti Ernesto tinha um belo sistema Bang and Olufsen, desenhado por Aalvar Alto-Lá-Com-Ele, para animar as vacas em quadrifonia. É outra coisa quando o leite sai das tetas a jorrar melodia, sem impurezas. Só que às vezes falha, se o DJ fôr grunho como o Ti Ernesto.
— Atão, Dr. Richard, tenho posto Springsteen: “The river”, “Nebraska”, “Born in the USA”.
— Há quanto tempo é que lhes põe Springsteen?
— Aí há uns 15 dias.

Richard King sorriu, mas estava desgostoso com a estupidez do campónio.
— Ó Ti Ernesto, eu já lhe tinha dito várias vezes que a ração musical tem de variar de vez em quando. As suas vacas estão carregadinhas de Brucelose. Agora, para desintoxicar do Bruce Springsteen, vai ser o cabo dos trabalhos...
— Ai, meu Deus, sou tão burro, tão burro, tão burro!
E o Ti Ernesto dava murros de punho fechado nas próprias têmporas, dos dois lados, em stereo, que dói mais, como manda a lei da frustração. Foi preciso Richard King agarrar-lhe nas mãos e acalmá-lo.
— Pronto, Ti Ernesto. As vacas não lhe vão morrer. É preciso ter calma.

Receitou exclusivamente músicas grelhadas durante um mês. As vacas tinham de beber muito água. Depois, aos sinais de alguma melhoria (ou melodia), um pouquinho de Mozart nos altifalantes. Com prudência, claro. Nada de allegros, para não perturbar a convalencença.
Depois, se as coisas corressem bem, até poderia dar-lhes Rolling Stones, Madonna, Britney Spears. As vacas gostavam imenso de Madonna e Britney Spears, porque o som lhes era particularmente familiar.

O Ti Ernesto deu um grande abraço a Richard King e deixou as lágrimas cair. O doutor era um anjo. Um anjo trabalhador, diga-se. Comeu uma sandes de torresmo, bebeu uma Cola Light e ainda foi ver o porco do Ti Jaquim.


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— Boas noites, Ti Jaquim. Então o que se passa com o Arnold?
— Boas noites, Dr. Richard. Eu até já tenho vergonha de o chamar. O cabrão do porco está-me outra vez com uma carraspana de Cabralose na focinheira! Um dia destes perco a focinheira, dou-lhe um pontapé no trombil e vai servir de sandes na Bairrada!
Havia muita raiva na voz do Ti Jaquim. Arnold era uma delinquente apto para as mais variadas reincidências. Gostava de viver no campo, mas andava sexualmente embrulhado com Eddie Albert e Zsa-Zsa Gabor, num estranho caso de triolismo. Aos fins-de-semana, era certo e sabido que tentava sempre fugir para a vivenda “Green Acres”.

O problema nem era o porco esgotar-se no sexo com o casal. O problema nem era o porco passar a madrugada a ver filmes de cowboys. O problema era a mania de se pôr a ouvir cassettes do Zé Cabra umas atrás das outras.
Após diagnóstico rápido e certeiro, Richard King confirmou os receios mais negros.
— Ti Jaquim, o senhor já sabe o que a casa gasta. O Arnold está mesmo com uma Cabralose galopante. Agora só vai lá com muita calma. Não pode ter sexo durante um mês. Nem com pessoas, nem com animais. Vai ter de levar uns shots de péniscilamina. Quanto a cassettes, é obrigatório que ouça Chopin ao pequeno-almoço e ao lanche. Depois dá-lhe Joel Branco ao almoço, com uma pílula de Becozime Forte. Ao jantar, Carmen às faixas fininhas.
— Obrigado, Dr. Richard. Não sei o que faria sem o senhor!
— Ora essa, Ti Jaquim. Fique bem.

Richard King recebia os salpicões e as morcelas da praxe e metia-se outra vez no carro do seu amigo Agostinho Single-Malt. No outro dia tinha agendado o duelo quinzenal de ténis nos courts de Figueiró.
O adversário era temível. Nada mais nada menos que o vigilante dos incêndios, que passava turnos de oito horas empoleirado em cima de uma torre, binóculos de prevenção e olho vivo.
Chamava-se Fernando Peçonha e jogava mesmo bem, o grande filho da puta.


Von Grazen, 13/8/2004, 04h30m, Fontão Fundeiro