15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, fevereiro 11, 2007

O Congresso de Heterónimos

Como pode ser tão belo um fim de tarde?
A Dra. Tereza Frisa-Robes não o compreendia. Era coisa que a ultrapassava. Mas decidiu comemorar o fenómeno: organizando um grandioso congresso de heterónimos. O “1º Maxi-Congresso da Heteronímia Pessoana” decorreu num castelo de Edimburgo, próximo do Loch Ness.
O monstro não foi convidado, até porque não havia uma certeza cabal da sua existência. E também porque não constava do “mailing”. Para além de várias opiniões mais do que duvidosas sobre a obra do poeta português.
Em compensação, Chris de Burgh compareceu, na qualidade de convidado especial, patrocinado pelo uísque “Highland Bataclan”, cujo nome derivava de um famoso bordel, em tempos frequentado pelo escritor Jorge Amado.
Os trabalhos decorreram sempre de madrugada, entre a meia-noite e as oito da manhã, porque os heterónimos adoravam jogar golfe de tarde e depois do jantar não prescindiam de abalar até ao “Deep Throat”, um bar acolhedor, propriedade de Linda Amor-de-Laço, uma venezuelana de ascendência hawaiana, radicada na Escócia há um ror de anos.
O único heterónimo que não aguentava a bebida era o Chevalier de Pas, que tinha a resistência ao álcool própria de uma criança de seis anos. Por isso, era necessário que alguém o carregasse às costas, de regresso ao castelo, onde assistia às sessões em permanente estado de embriaguez letárgica.
A ordem de trabalhos era muitíssimo completa, ou não tivesse sido proposta pela Dra. Tereza Frisa-Robes. Sem mais delongas, aqui se dá à estampa a futuramente super-citada ordem de trabalhos:
1- Sessão de abertura. Boas-vindas aos participantes. Uma palavra amiga.
2- A heteronímia em Pessoa: brincadeira parva, esquizofrenia, passatempo ou obsessão literária?
3– Aprovação do orçamento para 2006/2007.
4– Assuntos diversos.

A Dra. Tereza Frisa-Robes surgiu no salão nobre do castelo temperada de um esplendor particularmente vistoso, ou não exibisse um faíscante vestido de lantejoulas vermelhas, para condizer com a cor das novas lentes de contacto, o verniz das unhas e os cabelos. E os 714 heterónimos desconheciam ainda que ela tinha um “piercing” da mesma cor no clítoris. Claro que a “lingerie” também condizia, será escusado dizê-lo.
Tomou lugar no cadeirão da mesa da presidência, ao lado dos heterónimos mais respeitados, como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Alberto Caeiro.
Com a devida vénia, aqui reproduzimos o seu discurso de abertura:
“Queridos heterónimos: é com grande prazer que os recebemos hoje aqui. Sejam muito bem-vindos e saibam que lhes estou muito grata. A vossa presença, para além de factor dinamizador da cultura portuguesa e da diáspora, é uma fonte enorme de satisfação pessoal para quem tem dedicado uma grande parte da sua vida num ‘voyeurismo’ bem intencionado, procurando descobrir mais e mais ainda sobre todos vós.
A vossa presença é ainda uma resposta a todos aqueles que se permitiram duvidar da vossa existência. Que este congresso seja o primeiro de muitos. Se precisarem de alguma coisa, não hesitem em dirigir-se à Maria José, a responsável pelo secretariado, a quem desde já agradeço a disponibilidade manifestada, a simpatia e o entusiasmo com que me ajudou a organizar este ajuntamento. Sem ela, nada teria sido possível”.
O ponto número 2 foi debatido ao longo de duas semanas de madrugadas intelectualmente brilhantes. Merece particular destaque a comunicação dos irmãos Alexander e Charles James Search, que se deslocaram de Durban até à Escócia, tendo redigido o “paper” a bordo do transatlântico “Salty Sea”.
O “paper” intitulava-se “A heteronímia como antepassado da Playstation”. Basicamente, defendia a tese de que Fernando Pessoa criara os heterónimos porque não existia ainda Playstation.
Embora o ambiente de discussão nunca tivesse ultrapassado a fronteira da educação, a bem da verdade será forçoso confessar que algumas comunicações houve que roçaram perigosamente a fronteira da má educação, do caciquismo e da difamação.
Estará dentro desta classificação o trabalho de António Mora. O título é algo violento, tanto como o conteúdo da comunicação: “A heteronímia como masturbação psíquica de um sujeito afectado pela idiossincrasia do seu tempo”.

Em breves linhas, podemos adiantar que António Mora defendia a insanidade mental do poeta, devida a um incontrolado consumo de bebidas espirituosas, para além de outros factores.
António Mora foi vaiado de forma insistente durante cerca de 15 minutos, cronometrados por Maria José, que era extremamente rigorosa e achava importante referir pormenores como estes na acta do congresso.
O ambiente desanuviou a seguir ao almoço, altura em que 523 dos 714 heterónimos acederam de muito boa vontade em participar numa prova de orientação, com algumas características de “Rally Paper”. Os heterónimos que não quiseram participar dividiram-se pelas mais variadas actividades: sexo puro e duro, sexo meiguinho, lerpa, xadrez, damas, chinquilho, burro-em-pé, bisca dos nove, esgrima e simples convívio.
No dia seguinte, passou-se à discussão do orçamento para 2006/2007. Como em tantas assembleias por esse país fora, a matéria do orçamento é sempre pretexto para debates acalorados, algo técnicos e maçudos. Os que percebem muito do assunto costumam perder-se em pormenores cansativos; os que não percebem nada alvitram as coisas mais disparatadas.
Valeu o peso da antiguidade de Ricardo Reis para pacificar os trabalhos e proceder à votação. Numa alocução marcada pela sobriedade, Ricardo Reis defendeu de forma convicta e apaixonada os dez por cento do orçamento dedicados a criar um prémio literário para os heterónimos médicos a viver no Brasil.
“O facto de eu ser médico, heterónimo e viver no Brasil não pesou na minha opinião, posso assegurar-vos. Mas acho muito importante que haja um prémio literário para todos aqueles que estão nesta situação. É factor sobremaneira relevante para uma heteronímia mais justa e mais humana, no seguimento das conquistas de Abril”.
Alberto Caeiro debruçou-se essencialmente sobre aspectos rurais da heteronímia:
“É bastante incompreensível que na zona do Ribatejo seja tão pouco conhecida a obra de Fernando Pessoa. Eu tenho apenas a quarta classe, mas possuo uma cultura herdada das estrelas, dos ciclos da terra, da sabedoria que me advém do cheiro do estrume”.
O heterónimo falou durante cerca de 20 minutos, mas o tédio apossou-se da assembleia, apesar do estatuto respeitado de Alberto Caeiro.
O heterónimo Ferrão Fragoso (um ex-maoista com cara de cherne), apurado à última da hora como heterónimo, teve uma atitude de alguma deselegância e gritou, bem alto, para quem o quisesse ouvir:
“Ninguém calará a voz da classe operária.O camarada Alberto Caeiro é uma fraude. Não há nenhum ribatejano puro que seja louro e de olhos azuis. Não posso calar a minha revolta perante mais este atentado burguês”.

Finalmente, o orçamento foi aprovado, quase por unanimidade. Contemplava a sponsorização de alguns itens particularmente relevantes para a heteronímia pessoana, tais como: asa-delta, visitas de estudo aos bares mais consagrados de todo o mundo, subsídios à compra de viaturas de alta cilindrada, publicação em edições de luxo de todos os materiais escritos pelos heterónimos, independentemente da sua qualidade.
O último ponto da ordem de trabalhos foi bastante interessante, como seria de esperar de heterónimos de nível intelectual tão elevado. A contribuição mais marcante terá sido a de Álvaro de Campos, que propôs a criação de um grupo de trabalho.
“Longe de mim a defesa da censura. Quem me conhece sabe que eu sou o primeiro defensor das amplas liberdades literárias, sexuais e cívicas. Mas é perfeitamente vergonhoso o que estão a fazer à obra de Fernando Pessoa, colocando-o no mesmo plano de autores menores como Camões, Eça de Queiroz ou Lobo Antunes”.
Álvaro de Campos lembrou que nenhum destes autores possuía um heterónimo que fosse, provando a pobreza da sua criação literária. Criticou ainda a linguagem rebuscada dos “Lusíadas”, a obsessão revisionista de Eça de Queiroz e o processo de escrita de Lobo Antunes, que apelidou de “leit-motiv por marés”.
No seguimento da sua intervenção foi criado um grupo de trabalho coordenado por F.Antunes. O “Comité de Vigilância Literária” tinha por tarefa a criação de um “lobby” na Assembleia da República, para conseguir que uma percentagem do IRS cobrado revertesse para a “Associação dos Heterónimos Pessoanos”.
O comité dividir-se-ia em vários pelouros, a saber: Índex, Acções Punitivas, Finanças e Lazer.
Desde logo ficou decidido que o pelouro do Índex se encarregaria de hierarquizar um conjunto de obras perniciosas à literatura mundial. Em conjugação estreita com o pelouro das Acções Punitivas, o pelouro Índex se encarregaria de banir estas obras das bibliotecas, livrarias e outros locais públicos. Mas como a democracia é um valor fundamental, todo e qualquer particular que possuísse estas obras não deveria sofrer represálias. Mesmo os possuidores de livros de José Saramago.
O pelouro das Acções Punitivas basear-se-ia no modus operandi da ETA, das Brigadas Vermelhas e do IRA. Em casos mais extremos, seria possível contratar os serviços de organizações mais extremistas, designadamente oriundas do mundo árabe. Mas sempre na condição de avençados ou em empreitada, para não onerar a heteronímia pessoana com encargos de segurança social.

O pelouro das Finanças operaria segundo os moldes já estabelecidos pela associação, mas em casos especiais seria aprovado em Assembleia-Geral um fundo de emergência, aplicável a casos mais complexos.
O pelouro do Lazer tinha por objectivo proporcionar uma vida sã aos membros do comité, de molde a que estivessem sempre nas melhores condições para trabalhar. Caber-lhe-ia organizar deslocações a clubes de strip, a casas de massagem, ao cinema, a restaurantes de luxo, etc.
Cumprida a ordem de trabalhos, o congresso terminou com uma magnífica sessão de fogo-de-artifício. No relvado em frente do castelo os heterónimos correram nus pela relva, fizeram malabarismos com garrafas de champanhe francês, declamaram Fernando Pessoa, jogaram futebol, deram largas à sua dinâmica cultural.
Ora ainda bem.

Von Grazen, 11/7/2004

2 Comments:

  • Excelente! Essa do Chris de Burgh patrocinado pelo "Highland Bataclan" é de morte. Eh,eh,eh.
    Nas actividades desportivas só faltou mesmo um joguinho de râguebi, já que estavam na Escócia. Ai, que saudades das tardes passadas no Estádio Universitário...

    By Blogger Capitão-Mor, at 3:02 da manhã  

  • Realmente, podia ter calhado. Também passei muitas tardes no estádio universitário. A última a presenciar a vitória da selecção portuguesa sobre a Geórgia. Vamos lá ver se as coisas correm bem com o Uruguai, para a malta ir ao Mundial.
    E fui colega de turma no Liceu Camões do João Ferreira Queimado, que também era um espectacular jogador de futebol.

    By Anonymous Anónimo, at 6:01 da manhã  

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