15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, janeiro 28, 2007

Explicações de Inglês

Eduardinho chegou à Brasileira mesmo em cima da hora.
Fernando António já se encontrava sentado à mesa, com um bagaço à sua frente. O petiz estava algo intimidado, mas por fim lá se aproximou do poeta, que tinha um ar estranho.
— Deves ser o Eduardinho, que vem para a explicação de inglês.
Eduardinho disse que sim com a cabeça. Fernando António indicou-lhe a cadeira do lado.
— Senta-te aí, petiz. Já tomaste o pequeno-almoço?
Eduardinho esclareceu que tinha tomado um sumo de laranja.
— Um sumo de laranja não é nada. Um petiz como tu precisa de alguma coisa substancial, para aguentar um dia inteiro de provações. Ó Lopes, são mais dois bagaços!
O Lopes trouxe mais dois bagaços e colocou-os à frente de Fernando António. O poeta empurrou um para Eduardinho. Dois ou três pingos de bagaço escorreram pelas bordas do cálice e ficaram a evaporar-se em cima da mesa.
— Ó petiz, isto não custa nada. Olha para mim!
E pronto. Não custou mesmo nada. Fernando António atirou um bagaço, de penalty, como é de bom tom, pelas goelas abaixo.
— Viste? Isto não custa nada. É sempre a aviar. Beber bagaço é dar de comer a um milhão de portugueses.
Eduardinho olhou para Fernando António e percebeu que a vida não continuava se não bebesse o bagaço. Experiência inédita. Mas se o cálice parecia estar cheio de água, não podia ser assim muito difícil. Atirou a cabecita para trás e lá desapareceu o primeiro bagaço da sua vida.
Um violento ataque de tosse tomou imediatamente conta do corpo franzino de Eduardinho. Algumas senhoras finas invectivaram o poeta.
— Parece impossível. A dar bagaço à criança... o senhor é um irresponsável...
— Ó minha senhora, circunde-se de rosas. Beba, ame, cale-se. O mais é nada...
Eduardinho começou a recuperar o fôlego. Sem saber como nem porquê, um sorriso aflorou-lhe os lábios. O poeta aparou o sorriso do petiz com elegância e devolveu-lhe a graça com um sorriso ainda mais aberto.
— Bagaço, Eduardinho. O bagaço é que nos salva! Há por aí outra pinga boa, mas o bagacinho é que faz andar o mundo. Estás a perceber?

As senhoras finas levantaram-se da mesa do lado e desceram em direcção ao Rossio. Não se podia estar ao lado do poeta, cada vez mais bêbado, cada dia mais insuportável, com as suas manias e maluquices.
— Queres comer alguma coisa, ó miúdo? Come chocolates, pequeno, come chocolates. Olha, pede uma tablette pequenina e molha a pontinha no bagaço. Ah! pois é, já não temos bagaço. Ó Lopes, faça-me um favor. São mais dois bagaços e um chocolate fininho para o miúdo... mas olhe, daqueles que caibam no cálice...
O Lopes trouxe mais dois bagaços e um chocolate fininho, com papel às risquinhas, que Eduardinho tomou a seu cargo com prontidão.
— Ó sôr Fernando, o miúdo aguenta-se no balanço com os bagaços? Se calhar era melhor travar um bocadinho...
— Ó Lopes, não me diga que está como as lambisgóias do chazinho e scones... este miúdo tem pinta de ser de boa cepa... não é, Eduardinho? Olha, petiz, mergulha a pontinha do chocolate e trinca... isso mesmo... estás a ver como é? Vou só beber mais um bagacinho e já começamos a explicação...
Pelas 11 horas da manhã, Fernando António Nogueira Pessoa, bagaceiramente atestado, iniciou a primeira explicação de inglês da vida de Eduardinho, que já tinha a boca doce do chocolate e o coração quente do bagaço. De modo que via o poeta a dobrar e ouvia a sua voz como se vinda do Além.
— Isto é fácil. O inglês é uma língua muito bonita. Vais ver que gostas. Eu não tive dificuldade nenhuma. Olha, vê lá se consegues perceber a minha letra e tenta ler o que está aí escrito.
— Verbo tóbé.
— Quase. Verbo to be. To be, was, been. Vamos começar pelo presente. I am, you are, he, she, it is; we are, you are, they are. Diz lá o que pensas disto.
— Os verbos ingleses têm muito ar.
— Por acaso é verdade. Nunca tinha pensado nisso. Sabes, o verbo to be é ser ou estar. É o primeiro verbo que se dá quando se quer começar a aprender inglês. Repete comigo! I am, you are, he, she, it is… ó Lopes, são mais dois… ai não queres? é só mais um afinal, obrigado... we are, you are, they are, como está o senhor? É o sr. Verde, também é poeta e anda por aqui pelo Chiado.
Por volta das 12 horas e 30 minutos, o poeta achou que Eduardinho podia fazer uma pausa no inglês. Estava na hora de almoçar.
— Vamos ali para os lados do Terreiro do Paço. A segunda parte da explicação vai ser no Martinho. Mas antes vamos almoçar numa tasca jeitosa.
A Tasca da Clotilde era uma típica casa de pasto lisboeta, com toalhas aos quadradinhos, jarras de vinho tinto ordinário, serviço familiar e preços baixos. Já para não falar do colo avantajado e maternal da dona. Nos dias de festa, um cravo vermelho adornava-lhe os seios, como Muro de Berlim a dividir duas leitarias desavindas.
Por acaso a dona nem se chamava Clotilde, mas Leonilde. Clotilde era uma prima direita, que morava em Viseu e sabia tudo sobre rouxinóis, tentilhões e mais uma série de pássaros com nomes tristes.
— Ora então boa tarde, sôr Fernando. Sentem-se ali naquela mesinha do canto que já lá vou assentar o pedido...
— Boas tardes, D. Leonilde. A mesinha do canto nem é má ideia...
Foi mesmo na mesinha do canto. O poeta sentou-se, poisou o chapéu em cima de uma cadeira e ofereceu a outra, ao lado da janela, ao Eduardinho.
— Olha, filho, senta-te aqui, que ficas com vista para as meninas aos caracóis.
Dito isto, o poeta quedou-se pensativo. Coçou a cabeça por um instante e tirou uns papéis de dentro da sua pasta de mão. Durante dez minutos ninguém o ouviu. Eduardinho entreteve-se a analisar o ambiente da casa de pasto e a olhar pela janela. Não passou nenhuma menina aos caracóis.
Constatação sem consequências. O poeta já criara mais um poema.
“A menina dos caracóis/passa sempre à uma da tarde/em passinhos miúdos e banais/com a mãe atrelada nos seus ais”.
— Olha, lê e vê se gostas — disse Fernando António para Eduardinho.
O mocito, tímido, não queria dar uma opinião.
— Sôr Fernando, não quis interrompê-lo nos seus versos. Mas agora que acabou já posso tomar conta do pedido.
— Ó D. Leonilde, diga-me lá o que acha do poema.
Leonilde, que gostava muito de poesia (não falhava as marchas dos Santos Populares), deitou uma olhadela para o mais recente poema de Pessoa e disse, sem pruridos ou vergonhas:
— Ó sôr Fernando, sabe como eu sou. Tenho o coração ao pé da boca. Quando me pergunta se os croquetes são do dia eu também não lhe minto. Estes versos rimam demasiado, sôr Fernando...
Pessoa pediu um caldo verde, uma bifana bem passada, encomendou um bife com ovo a cavalo para o Eduardinho e guardou o poema na pasta de mão.
— Isto de ser poeta tem os seus truques. Se a gente acha que o poema é mau cria um heterónimo, para disfarçar. Claro que depois as coisas podem fugir do controlo. Mas deixa lá, estou para aqui a aborrecer-te. Então, viste muitas meninas a passear na rua?
— Vi, mas não havia nenhuma aos caracóis.
— Isso não faz mal. Resolve-se já o problema. Ó D. Leonilde, há caracóis?
— Então não, sôr Fernando? Mando-lhe já a minha filha com um pires deles bem aviado...
Três minutos depois aparecia na mesa um pires de caracóis bem aviado, elegantemente transportado por uma menina dos seus dez anos.
— Muito obrigado, Gabriela. Eduardinho, diz olá à Gabrielinha, que é filha da D. Leonilde. Estás a ver? Sempre há meninas e caracóis.
O poeta atirou-se aos caracóis como gato a bofe. Eduardinho recusou polidamente. A cabeça continuava um pouco flutuante e a tasca revelava ainda uma curiosa propensão rotativa.
— Ó petiz! Isto assim não pode ser nada, estamos às escuras. Ó D. Leonilde, traga um jarrinho de tinto da casa, dos maiores. E dois bagacitos, para abrir caminho... já sei, já sei, não queres bagacinhos... não faz mal... eu bebo os dois, para aquecer os motores... tu vais provar este tintinho, que é de estalo. Vem lá das Beiras. Uma coisa a sério. O quê? Tens a cabeça a andar à roda? Pois... pode ser do sumo de laranja. Deve ter-te caído na fraqueza. Uma vez bebi uma laranjada que me caiu mal. Olha, mete-se um bocado de gasosa no tinto e depois do bife com ovo a cavalo vais ver que te sentes outro.
Eduardinho comeu o bife com ovo a cavalo. É provável que os copos de tinto agasosado tenham alguma coisa a ver com este assunto: no final da refeição o recheio craniano de Eduardinho ouvia o ovo a cavalo a relinchar perdidamente.
Saíram da tasca. Fernando deu-lhe a mão. Não por especial afectividade, mas apenas para auxiliar o petiz a locomover-se nas ruas traiçoeiras de Lisboa.
— Deixa lá, não te preocupes, Eduardinho. Quando comecei a beber, as ruas também pareciam escorregadias. Vais ver que já estás fino quando chegares ao Martinho.
Chegaram ao Martinho sem incidentes. Eduardinho estava agora com a curiosa tendência de achar piada a tudo. A sua gargalhada fresca fez-se ouvir ao longo de todo o percurso, a propósito de tudo e de nada. A cabeça continuava a andar à roda, mas Eduardinho habituara-se e principiava a gostar da sensação. O corpo parecia mais leve. E não sentia o passeio.
— I am, you are... todos no ar, todos no ar... ah! ah! ah!

O poeta escolheu uma mesa a meio da sala, onde tinha por hábito produzir prosa para o Mundo esquecer. Saudou os empregados com uma reverência familiar e dispôs-se a continuar a lição.
Mal estavam instalados e com o reinício da explicação por segundos, Eduardinho levantou-se da cadeira e gritou lá para dentro:
— Ó Lopes, são dois bagaços, temos medo do escuro!
Pessoa ficou muitíssimo surpreendido. Mas com um simples movimento de cabeça, inequívoco, garantiu ao longínquo empregado que a ideia tinha sido aprovada. Por estranha coincidência, aquele empregado também se chamava Lopes. Eduardinho não deu hipóteses. Quando chegaram os bagaços, bebeu os dois à velocidade do relâmpago, num reflexo aterrorizador. E tratou de emitir um som consolado, seguido de um sonoro arroto bagaciento. Na atmosfera ficou a pairar um odor a bife com ovo a cavalo.
— Então isso agora é assim, ó petiz?
— Lá no almoço bebeste tu dois bagaços...
— Ai já nos tratamos por tu?
Eduardinho corou, com a bebedeira emigrada por uns instantes. Depois voltou ao paralelo das gargalhadas e disse:
— Gosto de ti. Primeiro parecias esquisito, mas afinal és muito mais giro que o meu pai, apesar de não teres jeito nenhum para as poesias.
Por estas e por outras é que o poeta achava que o melhor do mundo são as crianças. Descontadas as opiniões idiotas sobre poesia. Era visível que o miúdo estava bêbedo, por isso desculpava-se.
O resto da tarde foi passado com jogos educativos. Pessoa estava adiantado para o seu tempo, até em termos não exclusivamente pedagógicos. O heterónimo professor de inglês chamava-se Alexander Teach.
— Percebeste mesmo? Eu digo uma cor e tu dizes o nome de um objecto que tenha essa cor, em português, está bem? Vamos experimentar. Red...
— Vinho tinto.
— Muito bem.
E Eduardinho atirou-se para trás na cadeira e ergueu os braços em sinal de triunfo.
— Sou muita bom. Ah! Ah! Ah!
— Vá, vá, não te desconcentres. Isto ainda são coisas sérias. Não te esqueças que estás na explicação de inglês...
— Posso beber mais um bagaço?
(Porra p’rò miúdo, saiu-me melhor do que a encomenda. Se calhar não devia tê-lo entusiasmado com os bagaços. Parece-me um superdotado).
— Não. Hoje não há mais bagaços. Quando acabar a explicação bebes um capilé.
— Posso deitar um bocadinho de vinho tinto no capilé?
— Não senhor. Bebes o capilé como deve ser, com uma rodelinha de limão.
— Então um bocadinho de gin. O meu pai bebe gin com uma rodelinha de limão...
— Deixa lá as bebidas agora e concentra-te. Se acertares as cores todas dou-te um livro com desenhos para colorir... vamos lá, green...
— Vinho verde. Sporting.
— Muito bem. Agora blue.
— Blue claro ou blue escuro ?
— Os dois!
— Blue escuro, vinho do Porto. Blue claro, pastéis de Belém.
Não havia que enganar. O Eduardinho tinha potencial. Pessoa resolveu testá-lo de forma definitiva. O pink ia esclarecer a situação.
— Atenção agora, que é difícil. Pink...
— Ah! Ah! Ah! Mateus Rosé…
Chapeau. O diabo do miúdo era um predestinado.
Pouco depois a explicação acabou. Eduardinho bebeu um capilé e comeu duas sandes de presunto especiais. Fernando tomou um cordial e petiscou uns pastelinhos de bacalhau. Apeteceu-lhe beber mais um bagacito, mas o dinheiro estava a acabar e na volta quem bebia o bagaço era o petiz, que tinha reflexos demoníacos, mesmo bêbedo...
Nessa altura lembrou-se de que tinha de pôr o miúdo na paragem de eléctrico do Chiado e que a noite ia cair a breve trecho. Para evitar confusões, deu um café forte ao Eduardinho e obrigou-o a lavar a cara. Dois minutos depois ouviu-se claramente o som de vómitos. Pessoa dirigiu-se aos lavabos rapidamente e sossegou o miúdo.
— Não te preocupes, Eduardinho. Foi o presunto que te caiu mal.
Quando saiu dos lavabos, vinte minutos depois, Eduardinho já não tinha vontade de rir e o seu rosto apresentava um tom esverdeado. Pessoa fez um sinal ao empregado. O Lopes trouxe um leque e sais de frutos Kruchen. Eduardinho não queria beber, mas depois lá se começou a sentir melhor.
— Agora vamos a pé até ao Chiado. Vais ver que te sentes logo melhor. Quando entrares no eléctrico, arranja um lugar na janela e mete a cabeça de fora. Quando chegares a casa nem te lembras que estiveste mal disposto.

E lá foram os dois a pé até ao Chiado. A noite caíra sobre Lisboa. Havia estrelas no céu. O poeta olhou para Eduardinho, meditou durante alguns minutos e depois disse:
— No próximo dia, depois da explicação levo-te às meninas...
— Aos caracóis?...
Pessoa sorriu, com a alma agasalhada de meiguices.
— Sabes, petiz, a minha pátria é a língua portuguesa.
Lisboa era uma grande cidade.


Von Grazen, 17/3/2003, 06h50m

domingo, janeiro 21, 2007

O insondável caso do misterioso Ponto GL

Bela terra, Vila Viçosa. Fernando António combinara encontrar-se na localidade com a sua amiga Florbela Espanca, presidente de um movimento de libertação da mulher.
De forma secreta, Florbela também era a líder de um movimento sado-masoquista, que “noite sim-noite não” se reunia numa mansão para ler Sade, Bataille, Walser e praticar sexo violento.
O dia amanhecera com manias de brisa e histerismos de nuvens indecisas. Ora tapavam o sol, ora o descobriam sem o mínimo pudor. Poderia dizer-se com alguma propriedade que estava um céu de pintor. Não faltavam motivos iconográficos. O director de fotografia Robbie Muller também apreciaria sobremaneira os efeitos especiais da troposfera.
Fernando António estava imerso na leitura, bebia bagacinhos e de vez em quando levantava os olhos para o céu e ajeitava o chapéu, onde pousavam, de cinco em cinco minutos, libélulas particularmente adeptas de Florbela, que deitavam o canto do olho aos sonetos que Fernando António lia avida e fleumaticamente.
“Tanto clarão nas trevas refulgiu,/E tanto beijo a boca me queimava!/E era o sol que os longes deslumbrava/Igual a tanto sol que me fugiu!”.
A páginas tantas, Fernando António cansou-se da inconstância das libélulas, no seu pousar e levantar assustadiço. Comeu uma, por mera dissuasão, pois o poeta ainda não tinha fome. Eram apenas 11 horas, 23 minutos e 55 segundos. Fernando António nunca tinha fome antes do meio-dia, 7 minutos e 18 segundos.
Florbela chegou pouco depois, com uma perla de transpiração a escorrer-lhe pela face esquerda. Sentou-se num desvario, levantou o braço e pediu um Martini, com uma casquinha de limão.
— Meu querido Fernando, então, o que me diz de Vila Viçosa?
— Bela terra, Florbela, bela terra.
— Eu sabia que o meu amigo havia de gostar. Por isso o convidei. Ó Fernando, tem uma coisa colada ao lábio, a sair-lhe da boca.
Fernando António levou a mão ao lábio e retirou cuidadosamente uma asa de libélula que tinha ficado presa.
— Não é nada. Obrigado, Florbela.

A conversa começou aos ésses, tomou rumos intelectuais, peregrinou por questões turísticas, andou ao sabor do vento e dos acasos. Pelas 13 horas, 19 minutos e 13 segundos, o marcador assinalava: Fernando António, 11 (bagaços) — Florbela Espanca, 6 (martinis). Certo que Fernando partira com avanço, mas a menina Florbela não era peca a dar-lhe com solenidade nos martinitos.
— Ó Fernando, acha que era boa ideia pedirmos qualquer coisa para petiscar, assim tipo almoço?
— A Florbela é que sabe. Por mim, não há nada como um bagacinho e um soneto dos seus. De resto, já comi um insecto, que nem me soube nada mal.
Vieram queijinhos frescos. Veio broa. Veio manteiguinha. Veio um jarrinho de tinto, para misturar com Seven Up, à camionista de longo curso, antes do “balão”. Depois, como prato principal, cabrito assado à padeiro.
Tanto Florbela como Fernando não deram confiança às sobremesas, saltando logo para café e digestivos. No caso, cálices de Cointreau. Podia-se dizer que os dois amigos estavam bem. Estômagos aconchegados, a alma tranquila de ardências.
— Conte-me lá, Florbela, e o seu clube feminino?
— Sabe, Fernando, os tempos vão maus para a libertação das mulheres. O que me vale são as sessões de literatura nocturna. E mais umas coisinhas.
— Que coisinhas?
Florbela inclinou-se para a frente, agarrou com ternura na cabeça do poeta e segredou-lhe ao ouvido todo o pitéu sado-masoquista na mansão da Marquesa de Osga.
— A sério?!?
— Ó Fernando, eu ia lá brincar com uma coisa destas! Às vezes, basta tocarem-me num certo sítio e eu expludo logo. Sabe o que é o ponto G, não sabe?
Fernando António não sabia. Mas a vida tem curiosas coincidências. Um sujeito que discretamente lia o “Diário de Notícias” na mesa do lado, levantou-se num rompante, tirou o chapéu num gesto assaz nobiliárquico e apresentou-se:
— Se me permitem, creio que está no ponto de me apresentar. O meu nome é Ernst Grafenberg e sou o inventor do Ponto G. Sabem, o Ponto G “é uma área de tecido, semelhante a um botão, na parede exterior da vagina, que incha durante a excitação sexual. Quando o Ponto G é estimulado e suavemente pressionado, a mulher experimenta um orgasmo rápido e intenso. Alguns pesquisadores acreditam que o Ponto G pode ser o equivalente feminino à próstata, já que está situado perto do colo da bexiga. Procurar o Ponto G durante os preliminares é um modo excelente de ambos ficarem excitados sexualmente. A sua parceira deve deitar-se de costas enquanto você se coloca de lado, junto dela”.
Primeiro, Fernando António e Florbela Espanca ficaram sem reacção. Poderia dar-se o caso de estarem em presença de um embusteiro, com particular tendência para memorizar extractos do livro “Sexo e Prazer”, edições Asa. Fernando resolveu testar o homem:
— Então diga lá quantos centímetros de dedo indicador lubrificado se devem inserir na vagina...
— Bem, cinco a sete centímetros e meio — disse o alegado Grafenberg, enquanto levantava o seu indicador direito de forma professoral e os olhos lhe brilhavam.
Estes últimos pormenores convenceram Fernando António, que convidou o cavalheiro a sentar-se. Uma hora passada, pode-se dizer que os sintomas de intimidade se intensificaram. Grafenberg tinha o dom da oratória e era profundamente conhecedor da temática sexual. Além disso, possuía ainda o raro e apreciado mérito de misturar a linguagem científica com anedotas alentejanas sobre sexo.
— A senhora dona Florbela tem cara de ser dada a práticas sexuais, digamos, desviantes. E digo desviantes sem nenhum propósito de julgamento moral. Deixe-me que lhe aconselhe a posição de “Borboleta em suspensão”.
Banzados. Ah! pois! Uma pessoa pode perceber muito de poesia, até pode ser dada às artes do sexo, mas não está à espera que lhe apareça um Ernst Grafenberg a aconselhar posições que tais.
Banzados. Foi assim que ficaram Fernando e Florbela.
Grafenberg estava embalado. Citou, de memória, o livro “O grande O”, de Lou Paget, a páginas 115: “A posição de ‘Borboleta em Suspensão’ permite que a mulher controle a sensação de que precisa e quer. Neste desenho, em particular, ela apoia o peito contra a cabeceira da cama, enquanto o homem tem a cabeça apoiada na almofada. Desta forma, ele pode ajustar a pressão sobre o seu rosto e pescoço sem ficar com a sensação de que está a ser esborrachado”.

Era óbvio que Grafenberg também sabia o que era o mastoideu. Mas não foi disso que falou a seguir. Referiu de imediato que a “Borboleta em suspensão” também podia ser designada por Aka Somf (senta-te na minha cara). Meia-hora depois, com um ar grave, rematou: “O factor prazer durante a cópula é directamente proporcional ao conforto da posição que ambos adoptarem”.
E isto independentemente de se ser de Esquerda ou de Direita.
— O senhor Fernando é um homem culto, já vi. Mas sabe, por exemplo, o que é o nó Y?
Já eram letras a mais para uma só tarde. Fernando António encolheu os ombros e Florbela Espanca solidarizou-se com o poeta, na sua ignorância.
— Y só conheço o suplemento do ‘Público’, às sextas-feiras — afirmou Fernando.
— Nó, só conheço os de marinheiro e o górdio — disse Florbela.
— Para o movimento de nó Y, o homem alarga a lábia, servindo-se de dois dedos de uma mão e, com a segunda mão posicionada mais acima, coloca o dedo médio, ou os dois juntos, de modo a massajar o clítoris com movimentos laterais, para cima e para baixo, ou com movimentos circulares.
“Chapeau”!
Grafenberg não tinha apenas lábia. Ele sabia mesmo do que falava.
— Permitam-me que lhes aconselhe a leitura de Puchkine.
— Eu já leio os contos de Puchkine. Muitíssimo bons — confessou Fernando.
— Ah! o cavalheiro conhece os contos. Mas eu não me refiro aos contos. Refiro-me ao seu diário secreto. Conhece? Não? Está a ver como são as coisas?
Ora bolas! O Grafenberg começava a tornar-se um bocado chato, com a sua omnisciência. Está certo que já se tinha aprendido umas coisas, mas se o homem quase não passava a bola, era sabido que a tarde ameaçava tornar-se longa como o caraças. O melhor era mandar vir mais uma meia-dúzia de bagaços, pelo sim pelo não.
“E ser cornudo é horroroso e insuportável. Ninguém se aproveitou tanto da falta de conhecimento dos maridos como eu, e como eu gostava de ver os seus cornos a crescer, invisíveis para todos, excepto para mim!”.
Pois. A páginas 25 do livro editado pela Difel.

O homem citava as páginas como quem bebe um copo de água. Ou um bagacito, no meu caso. Foi a Florbela quem salvou a situação, desviando a conversa para os tempos retroactivos dos romanos e levando o jogo para o livro escrito por John Clarke, primo do antigo campeão de Fórmula Um, Jim Clark. “Le Sexe à Rome”, editions de La Martinière, gravura sugestiva na capa, com uma romana montada num romano. Uma pintura erótica da Rua Mercúrio, em Pompeia, no século I.
Alguns investigadores defendem que a mulher se chamava Maria José e o homem João Francisco, mas é altamente improvável.
— Sabe, amigo Grafenberg, muito do que nos disse já os romanos sabiam, séculos atrás.
— Não duvido, cara senhora. Mas é preciso sistematizar as coisas.
— O amigo Grafenberg sabia que a páginas 67 de “Le sexe à Rome” o último subtítulo diz “Tableaux de sex shows dans l’auberge de la rue Mercure”? — invectivou Florbela.
— Desconhecia totalmente, minha amiga. Por quem é!
— E sabia que isto só foi retirado das cinzas em 1823?
— Não fazia a mínima ideia.
Ora toma! Boa, Florbela! Só para o homem não ter a mania que sabe tudo. Já estava capaz de o mandar meter o dedo no rabo. Não o faço por mera prudência. O gajo punha-se logo a citar as técnicas de meter o dedo no rabo e eu é que ficava de cara à banda. Vou contra-atacar, agora que a Florbela já o encostou às cordas e o canto neutro está ocupado por vendedores de bijuteria.
— Amigo Grafenberg: já que estamos em maré de confidências, sabe o que é o ponto L?
O homem ficou branco. Suores frios começaram a escorrer-lhe pelas costas abaixo. Tantos anos de taradice sexual, tantas horas enfiado nas bibliotecas a masturbar-se com as gravuras antigas, tanto esforço posto em causa de um momento para o outro. Primeiro, o tal livro dos romanos que ele desconhecia por completo. Depois, um ponto L perfeitamente omisso no seu repertório de conhecimentos. Ó Céus cruéis!
Fernando António avançou, decidido.
— O Ponto L é o Orgasmo Literário, amigo Grafenberg!
Completamente derrotado, Grafenberg escusou-se com uma conferências das 9 da noite em Leipzig, com um helicóptero à sua espera, com um javali ao lume. Uma coisa assim. Foi-se. E tudo o vento levou.

Fernando António e Florbela Espanca suspiraram.
— Olha, Fernando, vai o meu último soneto, antes do jantar?
— Vamos nisso, Florbela.
— Chama-se “Horas rubras”. É assim: “Horas profundas, lentas e caladas/Feitas de beijos sensuais e ardentes,/De noites de volúpia, noites quentes/Onde há risos de virgens desmaiadas...
Oiço as olaias rindo desgrenhadas.../Tombam astros em fogo, astros dementes,/E do luar os beijos languescentes/São pedaços de prata plas estradas...
Os meus lábios são brancos como lagos.../Os meus braços são leves como afagos./Vestiu-os o luar de sedas puras...
Sou chama e neve branca e misteriosa.../E sou, talvez na noite voluptuosa,/Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
— Belo poema.
— Obrigada. Fi-lo há dias, no intervalo da orgia na mansão.
— Ah! daí a referência aos risos de virgens desmaiadas...
— Pois é, primeiro riem-se, depois desmaiam, quando percebem o que lhes vai acontecer. A propósito, vamos pagar a conta, que ainda tenho de ir comprar um capuz novo, antes da sex-shop fechar. Tenho usado um de cabedal preto que é uma verdadeira estufa. Uma pessoa até perde o prazer de estar a chicotear o vereador da Cultura...
Fernando António, cavalheiro, pagou a conta. Florbela saiu primeiro, em passo de corrida, dificultado pelos tacões-agulha dos seus elegantes sapatos à sado-masoquista. A sex-shop estava quase a fechar. Combinaram encontrar-se uma hora mais tarde.
O restaurante “O pargo enchernado” (especializado em ‘Pargo à la cherne’,‘Caldeirada de lulas enraivecidas’ e ‘Cataplana à la bacana com banana’) era um “must” de Vila Viçosa e já tinha sido combinado que Fernando António e Florbela Espanca fariam as honras da casa no primeiro dia da estada do poeta no magnificente rincão telúrico de Portugal.
Fernando escolheu uma mesa discreta, ao pé da lareira, encimada por alguns versos de Florbela:
“Gosto de ti apaixonadamente,/De ti que és a vitória, a salvação,/De ti que me trouxeste pela mão/Até ao brilho desta chama quente”. Ao lado, um brasão de Vila Viçosa e um quadro do Marquês de Bricolage, com uma caçadeira na mão e um perdigueiro aos seus pés.

Fernando sentou-se, pediu um tartex e um conhaque, só para entreter. Um criado de cabelos grisalhos e pinta de bissexual veio limpar a mesa das migalhas, com uma escovinha toda amaricada. O som da escova na toalha manchada de “Porta da Travessa tinto 1640, 2ª edição” produziu um efeito calmante no lisboeta, que pediu um charuto e se recostou no amplo cadeirão de cabedal. Pouco depois chegou Florbela, com um saco de plástico preto e doirado.
— Então, essas compras?
— Sabe, Fernando, este país está cada vez mais pindérico. Para além de fechar às 19 horas, a sex-shop tem uma capacidade de rotação de produtos verdadeiramente escassa. Lá tive de comprar um capuz do ano passado, uma coisa completamente ultrapassada. Já ninguém fustiga em Paris com um capuz assim. Mas nós somos o esgoto da Europa e Vila Viçosa deve ser a capital do “dumping” dos produtos S&M.
— Tenha calma, Florbela. Também não há-de ser assim tão mau.
— É, sim senhor. Já viu a carta, Fernando? Aconselho particularmente as “Enguias ao supremo enleio”. É um prato de homenagem ao meu poema, que termina assim: “E quando a derradeira, enfim, vier,/Nesse corpo vibrante de mulher/Será o meu que hás-de encontrar ainda...”.
Fernando estava mais virado para o tornedó de carapaus com molho à espanhola, acompanhado por feijão verde e castanhas assadas, uma especialidade do Chef Sílvio, recém-chegado de um estágio de ‘nouvelle cuisine’ na Tasconha. Florbela pediu a Hamlet de Ovas de Intrujão. Com uma salada de alface e tomate, temperada com agriões.
O repasto estava a decorrer da melhor forma, ao som ambiente de Mozart, que se esgueirava pela sala ampla com a subtileza de um esquilo dos jardins de Gotemburgo. Na mesa ao lado, um sujeitinho não parava de rabiscar, em fúria, apontamentos para algo que o afligia. Escrevia e riscava, riscava e escrevia.
Às tantas, Fernando António, prestável, ofereceu-se:
— Peço desculpa de me intrometer, mas a minha pátria é a língua portuguesa. Posso ajudá-lo?
— Obrigadíssimo. Estou a tentar escrever a minha prosa de hoje para a crónica “O barbante na horizontal”. Não me sai nada. Nem um filme, nem uma peça de teatro, nem um comentário político. Vila Viçosa secou-me...
— Não diga isso. Uma terra que inspira a Florbela não pode secar ninguém literariamente. Olhe, ainda hoje à tarde senti uma verdadeira aproximação ao Ponto L...
— Ó meu amigo, que felicidade! Quanto eu não daria para aflorar de raspão o Ponto L...

Fernando António estranhou que o fulano soubesse o que era o Ponto L. Mas a verdade é que estava perfeitamente ciente dessa realidade literária. Apresentaram-se.
— Fernando António, escritor.
— Eddie Rabbit, professor subsidiário.
— Então o que o traz a Vila Viçosa?
— Estou a preparar uma tese, precisamente sobre o Ponto L. E talvez sobre o Ponto GL.
— O Ponto GL?!? — estampou-se de estupores o rosto de Florbela.
— Sim, o Ponto GL é o nirvana. A definição é esta: “Atinge-se o ponto GL quando a qualidade literária é tão elevada que produz uma ejaculação”. Ou seja, é a mistura do Ponto G com o Ponto L. Não há orgasmo mais perfeito.
— Nem a surfar um “pipeline” no Hawai? — perguntou Fernando.
— Nem isso. Nunca atingi o Ponto L, mas tenho amigos que o conseguiram, embora nunca atingissem o GL. Donde, o mais correcto é conformarmo-nos com o nosso destino. Donde, o melhor é continuar a ler Benjamin, Derrida e outros que tais. Dá sempre jeito para uma boa mesa redonda, um colóquio. Donde, cá vamos andando.
O diálogo prosseguiu animado pela noite fora. Fernando António, Florbela Espanca e Eddie Rabbit partilhavam a paixão pela literatura. Ora, se juntarmos a esse gosto uma mesa farta e aprimorada, que mais se pode pedir? Eddie Rabbit acabou por escrever a sua crónica à sobremesa (“O cinema de animação existe?”) e saiu com os dois amigos para a noite de Vila Viçosa, agitada por uma movida sempre renovada.
No restaurante “O pargo enchernado”, finalmente vazio, um quadro vetusto ganhou uma animação particular. O Marquês de Bricolage podia finalmente mexer-se. Fez uns exercícios de desentorpecimento, baixou-se para um afago ao canídeo e desabafou:
— Porra, estava a ver que estes chatos nunca mais se iam embora. Como está o meu Mondeguinho? Uma festinha no Mondeguinho, uma festinha no Mondeguinho...
Na parede em frente, num quadro de Sisley, um homem num barco gritou para o Marquês de Bricolage:
— Ó Marquês! Todas as noites é a mesma coisa. Desvie lá a arma! Sempre que faz festas ao cão a arma fica apontada para o meu quadro. Não lhe chegou ter acertado na aguarela da Catarina Eufémia na Noite de Natal?
Quem sabe alguma coisa sobre os fantasmas de Vila Viçosa que ponha o dedo no ar. Está bem, Grafenberg, está bem... vejo que o senhor sabe.

Von Grazen, 20/7/2204, 00h45m.

domingo, janeiro 14, 2007

A minha pátria é a Amazónia Portuguesa

Sei não, cogitou seu Caeiro, no tranquilo do campo.
Esse tal do Sindicato dos Escritores Profissionais da Amazónia seria legal? Pô, eu quero mais é ficar por aqui, cuidando da criação e dando ração para eles: Bernardinho, Álvarito, Ricardão. Meu rebanho, viu?

ZÓING. ACTIVAR CONVERSOR, POR OBSÉQUIO.

Um incómodo. Largar tudo e acorrer ao convite do Sindicato dos Escritores Profissionais do Amazonas era uma coisa que Alberto Caeiro considerava problemática. Gostava pouco de se deslocar. Depois, Manaus era no fim do mundo.
Mas como o presidente José Ribamar Mitoso tinha sido tão simpático, seria indelicado recusar um convite sobremaneira bem-intencionado. O intercâmbio cultural entre Portugal e Brasil não podia ser desprezado. Até porque os rurais devem ajudar-se. Claro que Manaus já era uma grande cidade, mas de certa forma ainda vivia uma provinciana ruralidade.
Havia outro factor. Tinham ficado a bailar-lhe no cimo do cajado uns versos provenientes do Brasil, já não sabia de quem: “Os homens são banais/em suas abstracções/sem nexo/Os amigos/são legais/mas não fazem sexo”. Era quase certo que estes versos eram amazonenses, mas de quem? Do próprio Ribamar Mitoso?
Era uma terrível chatice não se lembrar, mas a vida do campo é tão sossegada que um guardador de rebanhos não tem margem para se organizar como deve ser ao mínimo sinal de inquietação.
Estava nestes considerandos quando o Zé Pedal (o carteiro da povoação) lhe trouxe mais uma carta, saindo da bicicleta com um sorriso de orelha a orelha, após mais uma exibicionista derrapagem controlada que levantou uma enorme nuvem de poeira.
Caeiro, encostado ao tronco de uma árvore frondosa, não achou piada nenhuma àquilo, mas já sabia que não adiantava de nada protestar. O Zé Pedal era jovem e tinha uma irresistível tendência para o exibicionismo. Até ao dia em que batesse com os cornos em algo duro ou um touro mais envinagrado lhe metesse os chifres pelo traseiro acima.
— Carta, Ti Caêro. Atão os carnêros, tudo na paz do Senhor?
— Tudo. Obrigado. Vê lá se andas mais devagar, rapaz.
— Um carteiro não tem vagar para andar devagar, Ti Caêro. A gente tem de dar ao pedal. As cartas têm de ser entregues com velocidade.

Alberto Caeiro fez que sim com a cabeça e o Zé Pedal lá saiu a toda a brida.
Olha, olha. Mais uma carta do Brasil. Isto é moda, não haja dúvidas. Ao olhar para o remetente, os olhos de Caeiro encheram-se de “irish mist” (brumas irlandesas, para quem não saiba irlandês). Mais do que de névoas húmidas portuguesas. O poeta tinha uma costela bem vincada de “irish afection countryside”. Quer dizer, uns afectos muito particulares e rurais. Irlandeses. Porque havia dois países com indiscutível veia poética: Portugal e Irlanda. Dos trigais portugueses subiam poemas aos céus todos os dias. E pelo meio dos trevos irlandeses rastejavam brumas e versos todas as madrugadas. E assim mesmo é que era bonito.
A carta vinha de um “pen friend” que não conhecia pessoalmente, ou seja, em Pessoa. Um “pen friend” é um amigo com quem as pessoas se correspondem. É favor não confundir com coleccionadores de canetas. Eu sei que a gente da cidade sabe estas coisas, mas para a malta do campo é conveniente falar devagar. Até por causa do calor.
“Estou sabendo que o amigo está de caminho para Manaus, a convite de Ribamar Mitoso. Disponha de meus modestos acomodamentos. Meu lar é simples, mas terei o máximo gosto em o receber. Será oportunidade para nos entroncarmos de afectos, descobrir nossas filiações poéticas intrínsecas. Se fôr de seu agrado, terei máximo prazer em lhe mostrar os pontos mais valiosos da cidade. Aguardo sua resposta. Receba um abraço grande, do seu:
Guimarães de Paula”.
Ai o caraças! Agora é que não dava mesmo para dizer não. Guimarães de Paula era um bom homem. Ganhara um prémio de poesia, mas nunca lhe publicaram “Os rebanhos da fuga”, uma obra construída ao longo de 40 anos. Nascido em Manacapuru, amazonense puro e idealista, tinha abdicado de ser escritor profissional por questões de sobrevivência. Era funcionário da Petrobrás. Fernando António vivia uma situação semelhante.
Guimarães, filho de Seu Raimundo e de D. Palmira, era um homem simples. Nunca se pusera em bicos de pés para publicar a sua poesia. Foi Guimarães de Paula quem fundou o Clube da Madrugada, que deu início ao Modernismo no Amazonas. Tinha tanto mais valor quanto era um autodidacta sem formação.
Alberto Caeiro meteu umas roupas na mala, pediu ao amigo Roberto Carneiro que se encarregasse temporariamente do mister da educação do seu rebanho, e infiltrou-se no Jumbo da Varig, algo receoso.

A viagem foi assim-assim. Caeiro entreteve-se a descobrir nuvens com forma de carneiros e ovelhas, enquanto a sua companheira de viagem, Teresa Rilhafoles, via nuvens em forma de baú por todo o céu.
À chegada, o átrio do aeroporto tinha uma pequena delegação à sua espera. Uma menina sardenta, de olhos azulados, mostrava um pequeno cartaz: “Seu Caeiro, aqui, por favor”.
Seu Caeiro aqui por favor deu-lhe dois beijinhos:
“Gostas de chocolates, pequena? Pois olha, estás com azar. O Álvaro ficou em Lisboa, a tomar conta da tabacaria. Mas pago-te um suco de côco, se quiseres”.
— Coco já não tem acento circunflexo, seu Caeiro!
— Não sejas contumeliosa, pequena. Percebo muito mais de cocos do que tu. Olha, toma lá os cocos que há: babão, baboso, cabeçudo, catulé, da baía, da praia, da quaresma, da serra, de catarro, de colher, de espinho, de indalá, de iri, de macaco, de palmeira, de praia, de purga, de rola, de vassoura, de zambê.
— E ainda faltam o coco-macaúba, o coco-naiá, o coco-peneruê e o coco-pindoba.
— E sabes o que é um coelho-rochense?
— Isso não, seu Caeiro.
— Pois olha, é habitante ou natural de Coelho da Rocha.
— Pôxa, seu Caeiro. Sabe demais! Onde é Coelho da Rocha?
— No Brasil não faço ideia. Em Lisboa é em Campo de Ourique.
A pequena conduziu Caeiro para uma carrinha e depositou-o numa esplanada. Alberto ainda estava à procura de coordenadas quando uma enorme salva de palmas se fez ouvir.
Um grupo de umas trinta almas aplaudia o poeta com genuína admiração. Depois, duas poetisas amazonenses ofereceram-lhe um enorme ramo de flores e convidaram-no a sentar-se à sombra, na cabeceira de um aglomerado de mesas de tampo verde, previamente dispostas.
Quem eram as poetisas? Mulheres de enorme alma poética, semelhante a Sophia ou Florbela. Os seus nomes? Querem saber tudo, não é? Está bem. Pois fiquem sabendo que se tratava de Lisiê Silva e Rose Clement.
Não conhecem como? Estão a gozar? Não?..
Bem, então a partir de agora ficam a saber que Lisiê Silva é poetisa amazonense de Manaus com direito a sítio e tudo. Qual sítio? Não é o sítio do picapau amarelo, olha que coisa. É sítio da rede. Não, nada disso. Tem um site na Net, prontos.
Um site muito cuidado. Abre-se o site e toca o “Borbujas de amor”, do Juan Luís Guerra. E há corações a voar por tudo quanto é sítio. Lisiê é “fascinada por paisagens naturais, pôr-do-sol, arco-íris, cachoeira, água, chuva, plantas, árvores, frutas, enfim, tudo o que faz parte da Natureza”. Profissionalmente é webmaster e webdesigner, mas poetiza umas coisas. Até teve o poema “Eu” escolhido para figurar na antologia “Poetas ocultos do Estado do Amazonas”.
Não se chegou a perceber se Lisiê Silva estava mais próxima do Sindicato Profissional dos Escritores do Amazonas ou da Associação dos Escritores do Amazonas. E ainda há Federações de escritores em Brasília e muitas agremiações mais. A poesia e a filiação clubística andam de braço dado num país de poetas, como Portugal e a Irlanda.
Rose Clement também tinha um site cuidado e foi com ela que Alberto Caeiro engraçou assim de repente:
— Sabe, eu nasci em Manaus, quando a cidade pouco conhecia asfalto e shoppings. Eram dias de missas fervorosas de domingo, folclore alegre e verdadeiro, tartarugadas aos domingos, peixe grande assado na brasa, nossos pratos típicos tão festivos, naquela vida simples que ia correndo doce como rapadura — confessou Rose, que tinha um sorriso sem espinhos.
— Maravilha! Olhe, o Guimarães não está por aí à minha espera?
— Não. Mandou dizer que só chega a Manaus daqui a três dias. Imponderáveis. Mas não se preocupe. Vamos tornar a sua estada o mais agradável possível. Antes de mais, vou recitar-lhe um poema meu, que se chama “Mercado Municipal”:
“No mercado grande o peixe/tem tamanho respeitável./É quando quem vende enrola/filé que dá bola,/que com grito meio amável/vende frescura no peixe.
Vê-se campos de bananas,/sol a dourar-se no milho,caminhos de macaxeiras,/vê-se alegres cozinheiras,/dando calor a um filho,/balançando as frigideiras.
Das frutas quer-se os segredos,/das folhagens, a promessa/que ervas, sim, tudo cura/e que qualquer criatura,/mesmo sem a fé expressa,/levará a crença nos dedos.
É mercadão e é retrato/da Manaus jovem senhora,/que o sol de selva, amarela,/abre portas e janelas/daquele que desde outrora/garante peixe no prato”.
— Minha cara Rose, a sua poesia é do mais apetitoso que tenho ouvido!
— ‘Brigada, viu, seu Caeiro!
— Trate-me por Berto, por amor de Deus! Vamos deixar-nos de cerimónias.
Estava o recém-descoberto Berto a fazer-se de olhares libidinosas a Rose (l’important c’est la rose, não é verdade?) quando uma voz forte invadiu a esplanada:
— “Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,/Zarpa.A íngreme cordoalha úmida fica.../Lambe-lhe a quilha a espúmea onda impudica/E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiro
Na glauca artéria equórea ou no estaleiro/Ergue a alta mastreação,que o éter indica,/E estende os braços de madeira rica/Para as populações do mundo inteiro!
Aguarda-a a ampla reentrância de angra horrenda
Pára e, a amarra agarrada à âncora,sonha!/Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as...
E não haver uma alma que lhe entenda/A angústia transoceânica medonha/No rangido de todas as enxárcias!”.
Caeiro ficou zonzo de tanta palavra desconhecida das gentes do campo. Sentiu saudades do Dicionário Torrinha e apeteceu-lhe de ânsias um shot de licor de alperce, lá do quintal, sem corantes nem conservantes.
Finalmente, encheu-se de coragem e levantou-se para cumprimentar o senhor que acabara de chegar em grande estilo:
— Mestre, permita que lhe ofereça esta “Nau” como pequena oferenda de chegada, embora em não seja um dos reis magos, muito menos um rei ou um mago. Mas gostaria que soubesse: farei todos os esforços para que seja um rei em Manaus, ao ponto de ir de regresso a Portugal a chamar-me mago — disse Augusto dos Anjos, envolvendo Caeiro num abraço quebra-ossos, à Bud Spencer.
Merda, se isto é tudo amizade, venham de lá os inimigos, pensou Alberto, que sorriu de nariz franzido pelas vicissitudes da vida quando Augusto o libertou, 30 segundos brasileiros depois. Quanto à “Nau”, quando ele era pequeno era uma água de colónia. Mas era inegável que a poesia de Augusto dos Anjos tinha um perfume rico e muito menos volátil que a “Nau” para acalmar as barbas rijas.
Rose introduziu Augusto dos Anjos:
— Berto, não se assuste com Augusto. Ele é mesmo assim. Sabe, ele cortou o próprio dedo para a capa de um livro já impresso. Já não tinha dinheiro para tinta. Ficou o título escrito em sangue: EU.
— Eu sou o Hamlet dos trópicos. A minha poesia é exagerada, está cheia de desesperos confessionais de um eu patológico e expressionista. Sou genial, mas tenho lampejos de um certo mau gosto e exageros barrocos. Estou centrado num certo naturalismo escandaloso e numa obsessão patológica.
— Não diga isso! — acamaradou Alberto Caeiro, tentando ser agradável.
— Não sou eu que digo. São os meus críticos — esclareceu Augusto, sentando-se ao lado de Caeiro e pedindo uma cerveja.
Pouco depois, chegou o último poeta: Cruz e Sousa, um “negão” com bom aspecto, filho de dois escravos de Florianópolis, em tempos chamada de Destêrro.
— Olha, vem aí o Poeta Negro! Senta aqui, Cruz, já aqui temos seu Caeiro, em carne e osso! — exclamou Augusto.
Cruz e Sousa, olhar marcado pela tuberculose e pelas dificuldades da vida, cumprimentou Caeiro com devoção e sentou-se com um sorriso ao mesmo tempo triste, meigo e esperançado.
— Anima aí, João, todo o mundo anda dizendo bem de seus “Broquéis”! Olha só, gente como Goulart de Andrade, Hermes Fontes, Adolfo Caminha, Cecília Meireles, Alphonsus de Guimarães, Silveira Netto, Murilo Araújo, Andrade Muricy, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Souza Bandeira, Elói Pontes, Nestor Victor.
Os nomes que Augusto proferiu, ao estilo de equipa de futebol, ficaram a bater no cérebro de Caeiro. Rapidamente imaginou que Souza Bandeira bem podia ser um heterónimo partilhado por Cruz e Sousa e Manuel Bandeira. E que Alphonsus de Guimarães bem podia ser um heterónimo de Guimarães de Paula. Mas esta rapaziada não tinha muita queda para estas brincadeiras. Gostavam de escrever tudo em nome deles. Paranóias!
A tarde decorreu bem animada, mas com algum toque de guerra de sexos. Tanto homens como mulheres queriam monopolizar as atenções de Alberto Caeiro. A coisa resolveu-se por si só perto das 21 horas, já que se aproximava a “première” de “Tróia”, com Brad Pitt. As senhoras tinham muito respeito por Alberto Caeiro, mas apesar de tudo o poeta não conseguia competir com o Pitt, ainda que em celulóide.

A pouco e pouco, os outros poetas foram também abandonando o convívio de Alberto Caeiro. Restaram na mesa Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Ângelo de Lima e Inocêncio Pinga-Amor, os últimos dois eram portugueses radicados há longo tempo em Manaus.
Comeram umas especialidades amazonenses e depois Augusto dos Anjos fez questão de instalar Caeiro no “Motel dos Inocentes”, Rua Frei José dos Inocentes, 369.
— Podia lhe levar para o “Cê qui sabe”, o “Le baron” ou o “Pousada del rio”. Mas você fica bem no “Motel dos Inocentes”. Sou amigo do dono. Ela terá champanha gelada para você, a troco de um poema inédito, quando estiver de saída, que ele vai colocar numa moldura. Já lhe prometi. Não vai me dizer que não.
As malas ficaram no motel. Depois, Cruz e Sousa despediu-se, apesar dos protestos de Augusto.
— Não seja assim, João. Vem prò forró por uma vez!
Cruz e Sousa não foi. A madrugada ficou por conta do quarteto constituído por Alberto Caeiro, Augusto dos Anjos, Ângelo de Lima e Inocêncio Pinga-Amor.
Começaram no “Badauê Clube de Campo” (mpb, pagode, samba, forró), em Tarumã; prosseguiram a arruada no “Boi Art’s - Arte do Boi Amozônico” (Shows de boi bumbá); estabilizaram no “Clave de sol”, em Adrianopólis.
Inocêncio Pinga-Amor não estava muito satisfeito. Em cada local onde paravam começava logo a dizer:
— Pronto, já se mostrou ao Caeiro. Vamos lá para o “Jet Set”.
Não que lhe interessasse o jet-set amazonense. O que lhe interessava eram os shows eróticos e de strip-tease do “Jet Set Night Club”.
— Bombas que cê é chato mesmo! — desabafou Augusto dos Anjos.
E lá foram todos para a rua 10 de Julho, caso contrário o Pinga-Amor não sossegava.
— O Caeiro também deve gostar de strip, não é, ó compatriota? — perguntou Inocêncio, com ar de tarado sexual.
Caeiro gostava de strip. A época de tosquia das ovelhas era algo que lhe dava particular prazer. E nem todos sabiam o toque de Midas de uma boa tosquia. Melhor do que Caeiro só um emplastro da Régua chamado Eduardo, por alcunha o “Mãos-de-Tesoura”. Que ciúmes, meu Deus!
No “Jet Set” a noite estava animada. As “minina” já tinham actuado durante bastante tempo, mas a noite era uma criança. O dia só nasceria três horas mais tarde. Tempo de sobra para desfrutar como deve ser o show erótico.

Ângelo de Lima encostou-se a um canto, a digerir a sua loucura. O ar estava impregnado com o acordeão de Richard Galliano, em brutais doses de spray musical que enchiam a atmosfera de “Sanfona”. Um “french touch” inconfundível. Puros 187 segundos de magia.
— Vai tomar alguma coisa, seu Ângelo? — perguntou uma empregada vestida como nos filmes de George Raft.
— Pode ser o mesmo.
— O mesmo de quem, seu Ângelo?
— O mesmo do gajo da música: um cálicezinho de Galiano.
Na mesa do lado, dois italianos sorriam perante a qualidade da música, as curvas das mulheres e o cheiro da vida a Chanel 5.
— Não me vou ralar mais, o que me resta hei-de gozá-lo até mais não poder, antes de sob as águas ir morrer. De tudo um pouco provo, e bem depressa. Percebes, Hugo?
Hugo sorriu. Percebia.
Ângelo meteu conversa.
— Isso tem uma certa poética. Mia soave... Ave?!... Almeia?!... Mariposa Azual... Transe!.. Que d’Alado Lidar, Canse... Dorta em Paz... Transpasse Ideia!... Hugo Pratt e Giorgio Baffo (famoso pelos seus sonetos eróticos e co-autor de um livro da Fenda com o banda-desenhista e viajante do mundo) pensaram que o homem era maluco. Mas não quiseram dizer nada. Não se deve contrariar. E depois, como contrariar o voo de uma mariposa azual? Ainda se fosse uma borboleta verde...
Augusto veio buscar Ângelo e pediu desculpa aos italianos.
— Nos desculpem. O nosso amigo tem alguns problemas, mas não é mau poeta. Incomodou-vos muito?
Hugo e Giorgio disseram que não. Augusto levou Ângelo pelo braço, a olhar para uma “minina” que descia a barra de ferro de cabeça para baixo, já em topless.
— Vamos nós, de braço dado, eu, que sou sonhador, e tu, ó meu irmão, que és marinheiro; tu que sentes a onda do mar a balouçar-te o corpo, a vida presa de um fio, e, quiçá, a alma, e eu que largo a imaginação no vasto mar do ideal, que a deixo embalar-se no ondear das quimeras, vamos nós, ó meu irmão, a devanear, e arrebatados nas nossas asas, brancas da pureza do nosso idealismo, pairar, pairar distante, à região do sonho. É uma meditação...
— Ângelo, se continuas com essas coisas deixamos de te trazer para a noite — ameaçou Inocêncio.
— Ó Caeiro, não está aborrecido connosco, pois não? Sabe, o Ângelo teve alguns problemas — esclareceu Pinga-Amor.
--- Não há problema nenhum. O Ângelo daria um excelente heterónimo. Infelizmente, a Pessoa S.A está a reduzir nos heterónimos e já começaram a deslocalizar pessoal. A senhora das limpezas, a Maria José, um heterónimo com tantos anos de casa, nem sequer foi poupada. Vejam lá que a puseram a vender pipocas nos cinemas.
Duas horas mais tarde, os poetas abandonaram o “Jet Set”, levando a tiracolo algumas “minina” de ar simpático, que estavam na rua a apreciar o luar, de vestidos curtos e alma invadida pela fadiga.
Augusto dos Anjos despediu-se à porta do “Motel dos Inocentes” e seguiu com uma loura para parte incerta. Inocêncio Pinga-Amor foi levar Ângelo de Lima a casa, pois nunca se sabia o que podia acontecer caso ele se pusesse a passear em peregrinações solitárias.
— Eu não estou doudo. Tenho sido manejado como um puro manequim. Por meio de venenos são-me senhores do cérebro.
Inocêncio Pinga-Amor encolheu os ombros de fastio e paciência e piscou o olho a Caeiro.
— Claro que não, Ângelo. Ninguém disse que estás doido.
— Não é doido. É doudo, como tintura de iodo.
— Sim, Ângelo.
— Já bebeste tintura de iodo, Pinga?
— Não, Ângelo. Ainda não.
— Devias beber. Fazia-te bem às cicatrizes no coração.
Jemper... trotivarius... devolveris... jejum... emoções... sempre... trotinetes... atum nos corações...
— Andaste a ouvir “Corações de Atum”, do Manuel João e do Galarza?
— Sei lá quem são. Jemper, trotivarius, devolveris...
— Pois, Ângelo. Agora vou-te pôr a casa.
— A casa não se põe. De noite, já se pôs. Nasce na alvorada.
Enquanto Pinga-Amor e Ângelo de Lima se embrenhavam na noite escura, Caeiro e uma “minina” de franjinha à Louise Brooks entraram no “Motel dos Inocentes”, onde ninguém era culpado de nada, mas todos os cremes eram premeditados. Desde o creme de amêndoas doces e lanolina para as massagens até ao tulicreme das tostas para o pequeno-almoço.

O quarto era agradável e Caeiro ficou de boxers, deitado em cima da cama, enquanto a “minina” foi para o jacuzzi e começou a chamar insistentemente por ele:
— Vem, amô! Cê ‘tá fazendo o quê? Vem! Ti faço um chamego...
— É só um momento. Tenho de dar um inédito para o dono do motel. O Augusto prometeu-lhe...
— Não demora, não? Sua gatinha ti ispera... viu?
— Vi.
O que Caeiro não estava a ver era uma única palavra na folha de papel em branco. Finalmente, saiu tudo de um jacto.
“Li hoje quase duas páginas/Do livro de um poeta místico,/E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,/E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem/E dizem que as pedras têm alma/E que os rios têm êxtases ao luar”.
Depois, serema e distraidamente, Caeiro entrou de boxers, peúgas e chapéu no jacuzzi, para grande choque da “minina” com franjinha à Louise Brooks, que se pôs a lavar meigamente as costas do poeta.
— Mi conta coisas sobre você.
— Não há muito a dizer. A 8 de Março de 1914 acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.
— Mi conta mais di cê.
— Abri com um título, “O guardador de rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:aparecera em mim o meu mestre.
— Amô, não tenho di lhe disculpá nada. Eu tô aqui prà cê. Tem alguma fantasia sexual favorita?
— Tenho. Gostava de fazer amor com a “Dolly”.
— A Dolly Parton?
— Não. A minha ovelhinha.
— Sabe, amô, eu sou do Rio. Não há nada como um suruba carioca. Mas com ovelhinha nunca vi.

E enquanto Caeiro estava no “jacuzzi” com a “minina” carioca de franjinha à Louise Brooks, Pinga-Amor tentava levar Ângelo para casa.
— Anda, Ângelo. Levanta-te do chão...
— Nortex, Sulex, Estex, Oestex, a rosa não era dos ventos...
— Sim, eu também não sou daqui.
— Ninguém é de lado nenhum. Charimbum, charimbum, bum-bum. O meu boi morreu, que será de mim?
— Olha, eu sou é das Avenidas Novas, em Lisboa. E não me importava nada de lá estar agora.
— Manaus. Manaus, naus, caravelas, galeões.Galeões, um “bouquet” de galeões. Mas galeões não rima com testículos.
— Por que raio havia o meu pai de ter nascido em Manaus, num sótão com jibóias? E por que raio havia de me deixar um casarão em herança ao pé da Ópera? Mas eu não podia passar férias em Porto Seguro, como as pessoas normais, em vez de me ter radicado em Manaus?
As noites de Manaus não são más. São apenas habitadas por loucos, criaturas abençoadas por Deus.
— Uma vez disse a Deus: posso tratar-te por Manitu?
— Sim, Ângelo. E Deus que respondeu?
— Nada de confianças.

Von Grazen, 25/7/2004, 05h39m

Doping: Água do Luso/Smarties/um pinheirinho Hagen-Dasz.
CDs: “The eminent JJ Johnson”(duas passagens)/ “French Touch (Richard Galliano)/ “Piazolla forever” (Galliano).

domingo, janeiro 07, 2007

A hidroginástica não é para senhoras

A convite do seu Criador, o grandiloquente Fernando António, Sua Excelência o heterónimo Álvaro de Campos resolveu iniciar-se nas artes científicas da hidroginástica, uma disciplina com os seus quês de imersão.
Fernando António era sócio de mérito do “Dissolves Place”, pelo singelo motivo de não ter falhado uma única aula de hidroginástica desde a abertura do clube. E sendo deste modo as cousas, ganhara uma medalha de mérito desportivo demolhado e o direito de convidar um amigo de 15 em 15 dias. Assim como o “Dissolves Place” frequentemente promovia sessões de Open Day (como o nome indica, um dia consagrado às actividades para sócios e não-sócios), também organizava iniciativas específicas de hidroginástica, denominadas de “Open Tanque”.
Chegara então a vez de convidar o seu grande amigo Álvaro de Campos, um dos heterónimos da criação de Fernando António, com quem vivera já muitos períodos de intensa alegria e também bastas desilusões de carácter literário e vivências sortidas, que estas cenas não se controlam. Era bom, era...
À las doze del médio dia (é assim que dizem nuestros brothers, obnubilando-se, por obséquio, alguma falha ortogonáfrica, não liguemos a coisinhas miúdas) Fernando António e Álvaro de Campos chegaram à recepção do “Dissolves Place”, uma hora antes do início da aula.
Convém dizer que as aulas de hidroginástica tinham um limite de sócios-imersores, como fatalmente teria de ser, caso contrário qualquer aula se transformaria facilmente em suruba neptuniano de contornos politicamente duvidosos.
Um sorriso radiante (todos os recepcionistas tinham sorrisos radiantes, era norma da casa) esperava pelos dois amigos no marmóreo “hall” de Carrara.
— Então, Sr. Fernando, era uma senhazinha para a hidro, para variar...
— Desta vez são duas, Prudência. Uma é convite para o “Open Tanque”.
— Ai, este senhor é muito parecido consigo. Se me permite a pergunta, são familiares?
— Este senhor é o Álvaro de Campos. É como se fosse meu irmão. Já palmilhámos muito por este país. Homem sério e recheado de méritos. Hoje vem experimentar a hidroginástica.
— Faz o senhor Álvaro muito bem. Vai ver que se sente logo outro mal saia da água.

(Numa bichanada aos leitores, coisa rápida, já se vê, que o conto ainda vai no adro, podemos dizer que com o Nogueira Pessoa não havia problema nenhum em construir o Outro)

O cartão “Dissolves Place Very Special Gold Platinum” passou dos dedos finos e habituados à escrita de Fernando António para os dedos sensuais de Prudência, uma ruiva de olhos verdes, que augurava tempestades de intercâmbio de carnes a quem fosse bafejado pelos ventos da fortuna.
Foi também através da intermediação dos dedos de Prudência que duas senhas de hidroginástica transitaram do cofrezinho da recepção (todas as senhas estavam fechadas em cofres) para as mãos de Fernando António e Álvaro de Campos.
Fernando António tinha direito a senha personalizada, com a sua foto. Álvaro de Campos recebeu uma senha a dizer “Dissolves Place Guest”. No verso tinha uns dizeres de boas-vindas. “Olá, estamos ansiosamente à espera do seu sorriso todos os dias. Há caracóis. Não se fia”.
A passo lento e literário, começaram a dirigir-se para os balneários, que se situavam dois pisos abaixo, num “bunker” à prova de vendedores de flores e arrumadores toxicodependentes.
— Olha lá, o que é que eu faço com isto, agora? — perguntou Álvaro de Campos, a estranhar o “Dissolves Place”, como quem se deita pela primeira vez numa cama que não é sua.
— Então, está bem de ver. Agora dás a senha à professora de hidroginástica.
— Então não se podia ir para a aula sem senha? Tu já passaste o cartão na entrada...
— Claro que não. Vê-se mesmo que não percebes nada de clubes finos. As aulas de hidroginástica têm um limite de imersinhos. Só dá para 250 de cada vez, que a piscina não é grande.
— Por acaso estou um bocado curioso. E também te confesso algum nervosismo.
— Não te preocupes. Sabes nadar?
— Não faço ideia. Não referiste esse pormenor no meu currículo?
— Olha lá, tu tens de andar com a cabeça no sítio. Se eu fosse a saber da vida de todos os heterónimos era chefe de Redacção da “Caras” ou da “Lux Woman” ou da “Flash”.
— Não me lembro, pá. E tu também devias ter atenção a estas coisas. Afinal, eu não sou um heterónimo qualquer. Faço parte dos heterónimos de estimação.
— Mas tu pensas que és mais que o Robert Annon ou o Jean Seul de Méluret?
— Estás para aí a atirar-me como nomes para ver se me baralhas. Esses heterónimos nem sequer existem...
— Por acaso existem. Só para não te armares em esperto.
— Então diz lá quem são.
— Agora não tenho pachorra para te aturar. Ainda temos de nos equipar, fazer sauna, banho turco e tratar das unhas, antes de ir para a hidroginástica. Olha lá, trouxeste touca?
— Touca? Qual touca?
— Olha, uma touca de cabeleireiro! Porra para o homem, parece que é estupidozinho da carola! Não podes entrar na água sem touca. Eu disse-te para trazeres uma touca.
— Não disseste, não senhor.
— Pronto, se não disse...não disse. Mas devias saber que em todas as piscinas é preciso touca.
— Tu é que crias os heterónimos. Tu é que deves tratar de tudo.
— Olha lá, mas tu pensas que eu sou o teu pai? Também queres o rabinho lavado com água de rosas?
— O rabinho lavado com água de rosas dispenso.

(Ainda a título meramente especulativo, fala-se que o “Dissolves Place” tem a intenção de criar uma actividade em que o rabinho dos sócios é lavado com água de rosas. A actividade chamar-se-ia “Rose Water Clean Ass”)

Já nos balneários, Álvaro de Campos insistiu com Fernando António. Um criador de heterónimos é um verdadeiro pai literário. Responsável por tudo o que lhes acontece. Obrigado a uma omnisciência divino-literária, sob pena de cair do Olimpo dos génios para a Chelas da escrita.
Fernando António tirou do saco de desporto (comprado no “Dissolves Place”, em tons de rosa-choque e doirado) um cadeado doirado e verde-alface. Álvaro de Campos ficou a olhar para ele, espantado. Fernando António mirou-o de alto a baixo, teve um lampejo de clarividência e desabafou:
— Não me digas nada. Também não trouxeste cadeado?
— Eh! pá. Desta tenho de fazer mea culpa. Lembro-me de me teres avisado.
— Noutro dia até podias ficar com as coisas aqui no meu cacifo privado. Mas ontem trouxe para cá uma colecção de fotos pornográficas da Ofélia e uma colecção de miniaturas da Solido e da Corgi Toys.
— Então e agora?
— Agora vais à recepção e pedes um cadeado dos mais baratos. Diz para meterem na minha conta. Depois pago com um poema. Pode ser aquele que é assim: “Gato que brincas na rua/Como se fosse na cama,/Invejo a sorte que é tua/Porque nem sorte se chama”.
— Isso é muita mau. ‘Tá bem que estes gajos têm uma quotas caras, mas também não é preciso descer o nível a este ponto. Estás a ser ordinário.
— Vê lá se queres levar uma lamparinada nas trombas. Em primeiro lugar, tu é que te esqueceste no cadeado. E depois o poema está publicado na colecção da Ática, que formou muita gente por este país fora.
— Eu sei que és bom, meu, mas deves reconhecer que há coisas más na tua obra. O conto do Hemingway com um gato também é uma tanga.
— Qual conto?
— “Um gato à chuva”. É o gajo a ver um gato à janela, está a chover e depois o gato vai-se embora.
— É só isso?
— Pelo menos é do que me lembro.

(A memória prega-nos partidas. Mas já se constatou que o Campos tem má memória. Esquece-se de toucas e cadeados, por que diabo não se havia de esquecer de um conto de Hemingway a rasar o banal? O conto “Um gato à chuva” ocupa as páginas 115 a 119 do livro “As torrentes da primavera, seguido de Um gato à chuva”, Livros do Brasil. Fala de um casal de americanos de férias em Itália e a chavala quer ir buscar um gato que está na rua a molhar-se. E acaba assim: “A criada surgiu à porta. Apertava nos braços um enorme gato, cinzento como uma carapaça de tartaruga.
— Queiram desculpar. O patrão mandou-me trazer isto para a Signora.)

Álvaro de Campos dirigiu-se à recepção e escolheu um cadeado posto recentemente à venda no “Dissolves Place”. Um modelo barato (apenas 133 euros e um cêntimo), com duas assoalhadas e casa de banho privativa. Com um nome sugestivo “Proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”. Na compra de dois cadeados, bónus de uma embalagem de Ketchup Light.

Álvaro voltou ao balneário e Fernando António já envergava uma touca cor de malva e uns calções da famosa marca aquática “Ardenas”. Modelo Verão 2006/2007. Um padrão discreto, com muito êxito: Safari. Castanhos e pretos às risquinhas, com uns olhos verdes de pantera a espreitar por cima de cada testículo.
Álvaro quedou-se por uma opção mais discreta. Uns calções pretos de marca branca, com elástico flácido e ar de quermesse de Natal.
— Por tua causa já não temos tempo de ir à sauna, ao banho turco e às unhas. Vamos já directos para a piscina. Não te esqueças do código do cadeado. Agora vê lá se também se te esqueces de um código com dez algarismos — bradou Fernando António, a destrambelhar-se de desatinos com o Campos.
Os cadeados do “Dissolves Place” eram uma coisa a sério. Com um código de dez algarismos era muito mais difícil a um sócio mal intencionado locupletar-se com o produto de um esbulho. Fernando António ficou no seu cacifo privado (número 666) e Álvaro de Campos estacionou no adjacente leste.
Percorreram em silêncio os 600 metros de curvas e contracurvas do balneário, no caminho para a piscina. O vapor de água gemia obscenidades em dolby stereo, sussurrando às imaginações mais delirantes jogos de dominação, discussões sobre o futuro de Portugal, quedas em decúbito dorsal, amizades florescentes a caminho do banho.
— ‘Tão? Tudo bem? — saudou Fernando António um sujeito forte, espadaúdo, bastante bronzeado, de cabeça grande, que lhe fungou qualquer coisa imperceptível com um ar amigável, mas ainda assim preocupado. Talvez frustrado fosse o termo mais correcto para descrever o seu estado de espírito.
Quando o corpanzilóide se afastou, Fernando António piscou o olho a Álvaro e perguntou-lhe:
— Não reconheceste?
— Osborne?
— Não, estúpido. Era o Minotauro. Anda à procura da saída desde a última aula de hidroginástica, a semana passada. Os sócios têm-lhe dado umas barras energéticas, o Andrew arranja todos os dias um farnel de ração. O gajo anda por aí até atinar com o caminho certo.
— Não era mais fácil vir um empregado e levá-lo para a saída?
— Isso dizes tu. O gajo é susceptível. Tem um mau feitio do caraças. Parece que armou um ganda banzé numa discoteca de Creta, com amigos, há uns anos. Todos levaram nos cornos.

Os sinais de piso escorregadio multiplicavam-se pelos túneis dos balneários, mas mesmo assim vários sócios se contorciam em agonia, enquanto as sirenes da emergência médica se ouviam, provenientes da recepção, num vaivém assistencial louvável.
Caído numa das últimas curvas antes de chegar à piscina estava José Láchego.
— Então, ó Láchego?
— Não se preocupem. É entorse sem derrame. Daqui a dois dias já estou a dar-lhe nas bicicletas. Resisti às torturas da PIDE, não são estes balneários que me vão quebrar.
— Estimei vê-lo. As melhoras. Este aqui é o meu amigo Álvaro de Campos.
— Muito prazer. É uma pessoa com muito talento. O meu camarada Manel Eufórico já me recitou uns poemas seus. Gosto particularmente daquele que é assim: “O descalabro a ócio e estrelas.../Nada mais.../Farto.../Arre...”.
Fernando António gostou de sentir o ego afagado e agradeceu em nome de Álvaro de Campos.
— És muita cabrãozinho. Eu sei que tu é que escreves os poemas, mas se não resolves assinar e me concedes a autoria, o mínimo é que me deixes agradecer os elogios em público — protestou Álvaro, amuado.
— Vê lá se atinas. Heterónimos tenho eu ao quilo. Heterónimos e gajas. Porta-te mal e eu ponho-te a trabalhar no McDonalds. Para não dizer: “Ó seu grandecíssimo e alternadíssimo camelo, eu dessincronizo-lhe as trombas e arranjo-lhe um lugar no desemprego”.
— Isso é do António Silva. Não me lembro é do filme.
— Eu gramo à brava do “Leão da Estrela”.
— Pois é. Um bálsamo para a alma. O Sporting avia sempre o FC Porto, cada vez que vejo o filme.
— Não te rias muito. Ouvi dizer que o Pinto da Costa já está a conspirar com o Manoel de Oliveira. Vão fazer um “remix”, uma versão exclusivamente em “slow motion”. As bolas levam tanto tempo a caminho da baliza que nunca se chega a ver um golo do Sporting. Conheces a teoria do filósofo Zenão de Eleia? Aquele que diz que não há movimento?
Vinte minutos depois, Fernando António e Álvaro de Campos chegaram à piscina, onde 127 sócios já estavam a aquecer dentro de água. A senhora Amália, de xaile preto, vendia binóculos aos associados e apregoava o seu produto em ritmo de fado:
— Olhó binóculo fresquinho! Olhó binóculo fresquinho! Dá sempre jeito! Dá sempre jeito!

E dava. A piscina do “Dissolves Place” da Rua 32 de Outubro (a entrada era pela Rua Miguel Canhões, mas a designação formal era a da Rua 32 de Outubro, vá lá perceber-se as mulheres...) era jeitosa, com 100 metros de comprimento por 30 de largura e uma profundidade de 5 metros e 20, para que ninguém se sentisse inibido.
Não se podia mergulhar estilo “Arrefinfa-neles”, “Aqui-vai-disto”, “Flipper” e “Maralhal Encorpado”. Também havia multas para quem urinasse, defecasse ou ejaculasse na água. Cuspir também não era bem visto, mas constituía uma lacuna legis do regulamento do clube, por isso havia sempre quem aproveitasse para aviar uma escarradela, enquanto a situação não era corrigida:
— Sai lagosta ao preço!
E toma lá fresquinho, com a viscosidade verde-feijãozinho a navegar pelos 100x30 metros do rectângulo aquático.
— Anda, temos de tomar um duche e ser fustigados 30 segundos por um chicote de tungsténio da última geração — proferiu, seráfico, Fernando António.
Os dois amigos passaram sucessivamente pelos duches “Bacanal” (bastante quente) e “Nice” (bastante frio), depois foram fustigados durante 30 segundos por um chicote de tungsténio da última geração, nas mãos sábias e compadecidas de Terezza Ripa-Holmes.

(Explicação científica: o fustigarium com chicotes de tungsténio é óptimo antes da imersão numa aula de hidroginástica. Provoca um fluxo de termo-acumuladores neuroniais, titila suavemente o ventrículo esquerdo em jactos de hidrofatelose, depois obriga o organismo a adaptar a sua temperatura ambiente ao ar condicionado da sua condição psicossomática, ou psicodimunitiva, conforme a constituição do indivíduo e a posição do parto).

Entraram na água em boa altura. A anaconda que matara por constrição (e não fizera nenhum acto de contrição depois da marosca do enrosca) cerca de uma trintena de associados (na última semana) tinha sido finalmente cercada pelas forças de intervenção aquática. Cinco minutos depois foi retirada em braços, a vociferar:
— Vão ter notícias do meu advogado. E podem esquecer os esquemas do “Feel Fit! Feel Light”. Eu tenho um personal trainer sexual, não preciso do “Dissolves” para nada. E as imersinhas estavam cheias de celulite. Vão ter notícias do meu advogado!
— Há gente que não se sabe comportar — disse Fernando António, com mais compaixão do que desdém.
Dez minutos depois de um saudável chapinhanço que agradou sobremaneira ao “rookie” Álvaro de Campos, a professora Joana irrompeu na piscina com um megafone:
— Sai de cena quem não é de cena!
Dois reformados que estavam a jogar à bisca lambida a bordo de um sofá pneumático abandonaram a piscina, um tanto contrariados, assim como um esquimó especialista em Física Nuclear, uma artista de circo que preparava um doutoramento em Literatura Americana e um elemento dos La Fura del Baus.
A professora Joana usava um top preto escuro e calcinhas tipo licra, da mesma cor, mais apertadas que o elevador de Santa Justa. Os ténis eram de molas insufláveis. Puxou o cabelo para trás e apanhou-o em rabo de cavalo. No caso, puro-sangue árabe. Tinha ainda em pleno centro do umbigo um elegante piercing-espiral, que lhe dava ainda maior brilho. Podia-se mesmo dizer que a professora tanto podia aclimatar-se à piscina do “Dissolves Place” como aos canais de Veneza. Embora cheirasse bastante pior nos canais de Veneza e Joana preferisse paragens exóticas, como a Tailândia, para passar o Carnaval.
Dirigiu-se ao DJ Juka Box e indicou-lhe o estilo de música que queria para a aula de 45 minutos.
— Boa tarde, Juka. Hoje vamos começar com “Lady Marmelade” e acabar com “Norah Jones”, na fase em que eles estão nos exercícios dos patinhos, para ir para a caminha. Não quero nada mais hip-hop, como a Carla usa de vez em quando.
Precisamente nessa altura, Carla Gonçalves entrou na piscina, sacou o megafone das mãos de Joana e gritou:
— Máximo! Máximo! Máximo!
Uma série de imersinhos começou a mexer-de dentro de água em grande velocidade, mas Joana mandou parar. Tinha sido um equívoco. Carla estava apenas a chamar um amigo, de nome Máximo Conti.
— Tens uma chamada telefónica na recepção. Posso dizer que atendes dentro de 15 minutos?
— Isso é muito apertado. Dá-me vinte minutos, para ir a correr com calma.
— Este gajo é o Máximo — disse Fernando António para Álvaro.
— Já tinha percebido — respondeu o heterónimo do ortónimo.

A aula estava prestes a começar. Mas antes disso era preciso controlar as senhas de presença, que estavam dispostas no banco de ripas madeiradas ao longo dos 100 metros de comprimento da piscina. Ao lado, toalhas desmaiadas amorteciam-se de fleumas.
Joana começou a apontar para as senhas e a perguntar:
— De quem é esta senha? E esta?
Os imersinhos usavam então os binóculos anfíbios vendidos pela D.Amália, presos ao peito por uma tira de bom cabedal (também vendida a 50 euros no clube). Lá se iam acusando.
Meia-hora depois as coisas estavam quase terminadas. Mas há sempre um mas.
— Desculpem, mas eu só tenho aqui 250 senhas e estou a contar 251 pessoas na água. Não posso começar. É muito aborrecido, mas tem de ser assim, por uma questão de ética e deontologia aquática.
Um sujeito baixinho, de olhos papudos e tez amarela, começou a suar frio e a ganir. As forças de intervenção aquática perceberam imediatamente quem era o infractor e arpoaram-no com um dardo limitador de insubordinações, importado de Los Angeles. O malandro foi retirado da água hirto e firme que nem uma barra de ferro. Já não era a primeira vez que Alexadrino do Oz tentava entrar na aula de hidroginástica sem senha.
— O que vai acontecer-lhe? — inquiriu, curioso, Álvaro.
— Provavelmente abatem-no. Ou então é convidado para um programa de televisão — respondeu Fernando António.
Juka Box fez soar os primeiros acordes de “Lady Marmelade”. Joana já tinha instalado o microfone individual.
— Experiência: Bruxelas, Estocolmo, Danone de pêssego... fuuuu... está a funcionar... todos me estão a ouvir bem?
— O quê?!? — perguntou um pianista alemão de nome Beethoven, fanático da hidroginástica e dos discos de Mozart.
— O meu nome é Joana. Bem-vindos à aula de hidroginástica. Está aqui alguém pela primeira vez?
Álvaro de Campos levantou o braço. Joana falou para todos, mas com especial incidência no novato.
— Podemos fazer uma aula mais puxada ou mais empurrada. O mais importante é manter o calcanhar no chão, como muito bem executa o senhor Aquiles. É muito importante para não forçar os gémeos Castro. Tronco direito, peito para fora, barriga para dentro, nada de piscar o olho às miúdas, moderar nos pirolitos, não esquecer de respirar de vez em quando, obedecer aos pais, respeitar os superiores.
Como o nome indica, a hidroginástica é ginástica para engenheiros hidráulicos, executada dentro de água, sem grandes engenharias corporais. Mas hoje em dia o conceito alarga-se a todas as pessoas e aos políticos.
Vão ter de me dizer os vossos 250 nomes, para ver se eu já consigo identificá-los no final da semana. Já fixei o Luís, que se porta sempre bastante mal e ainda não se afogou, apesar das promessas e o estilo boçal com que se relaciona com o meio aquático.
O senhor novo... sim... Álvaro, não é?... desculpe, não pode fazer a aula com esse chapéu na cabeça... pois, eu percebo que é o chapéu que usa sempre quando está sentado na brasileira, mas a sua vida sexual não pode interferir com as minhas aulas... pode dar o chapéu a um dos 30 empregados de limpeza que andam aqui à volta da piscina, nas pausas da venda de droga aos sócios... eles levam para o bengaleiro e recolhe o chapéu à saída, por apenas 5 euros.

Motores em marcha, 500 mãos e pés em movimento, a aula de hidroginástica já não era possível de parar.
— Leva o joelho ao peito, puxa bem... (Joana dixit).
Aconteceu logo a desgraça. Álvaro de Campos deu uma joelhada no peito de Fernando António.
— Estúpido! Leva o joelho ao peito, mas é em ti...
— Chuta! Chuta! Chuta à frente! (Joana dixit).
Um toxicodependente não resistiu ao convite, tirou a seringa de dentro dos calções, preparou o ‘caldo’ e mandou para a veia. A brigada interveio e levou o sócio janado para fora da piscina.
— Mas foi a Joana que disse! Mas foi a Joana que disse! Perguntem-lhe! Perguntem-lhe!
— Passa a esqui! (Joana dixit).
Um italiano de nome Alberto Tomba começou a rir-se às gargalhadas, de forma completamente louca.
— Passa ski! Si, má ké bello. Passa ski. Veramente bella!
A meio da aula, falhou uma porta de passagem e foi desqualificado.
— Porca miséria!
— E agora polichinelo! Grande! Abre bem os braços. Meninas, fechem bem as pernas. Há 250 pessoas dentro de água. A brigada não consegue controlar toda a gente. A hidroginástica não é para senhoras. Há aqui alguma grávida? Não? Tenham cuidado, pode haver no final da aula.
Agora circula à volta da piscina. Vem em passo de corrida, buscar o material. Não pára nunca, para o coração não sentir o choque.
— Phoda-ze que esta merda é puxada! — desabafou Álvaro de Campos.

(Desculpem. Não foi possível retirar esta frase antes de ir para a gráfica. Tem a ver com os processos de produção. Não é por medo de censurar o autor, esse palhaço às riscas)

— Não é nada puxada. Puxada é a RPM e o Pôncio Pilatos — disse Fernando António.
Nessa altura, na hora de ir buscar o material, Fernando António fazia sempre uma pausa para Kit-Kat e um bagacinho. Saía da piscina, dirigia-se à ‘pochette’ que deixara junto da toalha e mamava-lhe com gente grande.

(Questiona-se filosoficamente se Pessoa era gente realmente grande. A altura verdadeira de Fernando António Nogueira Pessoa não era lá grande coisa, mas como escritor foi enorme. E como vulto da cultura portuguesa até faz sombra ao Marão).

— Senhor Fernando, cuidado com o bagaço! Ainda dá cabo de si. É bastante contraproducente no meio da aula... (Joana dixit).
— Engana-se, minha senhora! A água é que dá cabo de mim. Ainda se fosse água-pé, agora esta água, em que nem tenho pé... deixe-me que lhe diga uma coisa: quando manda fazer os exercícios em suspensão... isso é promessa ou quê? Deve ser a gozar! Então a piscina tem mais de cinco metros...
— Sabe, a piscina estava planeada para 1 metro e 20, mas houve um anão que protestou e disse que era muito profunda. O administrador do clube em Londres embirrou com o anão e disse: “Ai é? Então agora vai ficar com 5 metros e 20, para o gajo aprender a mandar vir!”.
— Então e agora? O anão não se fez sócio?

(Não, efectivamente o anão não se fez sócio. Hoje em dia, Toulouse-Lautrec é mineiro, à noite regressa a casa, pelo meio da neve, com mais seis companheiros de trabalho e faz ginástica com a menina Branca).

— Vamos, cada um leva um esparguete e vai até ao outro lado da piscina! (Joana dixit).
— Já começo a perceber para que são os anúncios do Ketchup Light no átrio do clube. Este esparguete também é leve como o caraças. É pena só haver em cinza e rosa...
— Deixa lá isso, Álvaro. Concentra-te. Descontrai. Aproveita a aula.
— Eu gramo é as gajas. Olha aquela ali, de fato vermelho, a fazer-me olhinhos.
— Ó Álvaro, deixa lá a Pamela Anderson.
— Como é que sabes que é a Pamela Anderson? Sabes lá se é loura. Está de touca!
— Não vês que num raio de cinco metros não há ninguém à volta dela, por motivos de espaço?
Joana mandou toda a gente passar a esqui.
— Vira para a luz! Vira para o jacuzzi! Vira para a frente! Vira para o material!
Nesta fase da aula, as mulheres viravam-se mesmo para a zona onde o material estava guardado (esparguetes, aquafit, halteres), os homens viravam-se para Pamela Anderson, o que provocava sempre confusões, afogamentos e ataques cardíacos.
— Agora uma novidade. Vamos usar halteres, esparguete, aquafit e colheres de pedreiro, tudo ao mesmo tempo!
Fernando António ficou desconfiado e sussurrou para Álvaro:
— Esta das colheres de pedreiro leva água no bico. Vais ver que ainda nos cravam para construir mais um “Dissolves Place”. Estão a crescer como cogumelos. Olha, o Luís até esteve a dar autógrafos no Quintal da Loura, ao pé do autódromo do Terroril.
— Esse gajo escreve alguma coisa de jeito?
— Tem dias. Olha, aqui já vai em 24 mil 842 caracteres, só neste conto.
— Contando com a tua última fala?
— Não, sem a minha última fala.
— Mas o gajo ganha à linha?
— Não, isso era o Eça de Queiroz.
— Esse gajo escrevia melhor do que o Luís, não era?
— Isso é muito discutível.

Tudo tem um fim. Até mesmo uma aula de hidroginástica. Depois toda a gente segue até ao jacuzzi. É a hora da intimidade e das confidências. Álvaro de Campos não resitiu, pôs-se de pé e declamou:
— Ora até que enfim... perfeitamente... cá está ela! Tenho a loucura exactamente na cabeça. Meu coração estoirou como uma bomba de pataco, e a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima... graças a Deus que estou doido!
Fernando António, muito enfadado:
— Já acabou, ó heterónimo?
— Não, acabou foi o conto. O poema acabava em “ Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o. Com esforço, mas era para bom fim. Ao menos era para um fim. E assim como sou não tenho nem fim nem vida...”.
— Isso é um bocado Monty Python.
— Pois claro que é. Por que é que pensas que eu gosto de Fernando Pessoa?

terça-feira, janeiro 02, 2007

Paris é uma festa

Podiam lá falhar uma coisa daquelas!
No dia 5 de Outubro de 1889 (ainda não era feriado em Portugal) abriu o “Moulin Rouge”. O conde Henri de Toulouse-Lautrec-Monfa, muito senhor do seu nariz e de uma estatura moral de 1 metro e 52, compareceu. Obviamente acompanhado pelo seu novo amigo português, Fernando António.
— Sabe, Fernando, vou fazer um cartaz sobre o estabelecimento. Mas gosto de fazer as coisas calmamente. Só deve estar pronto daqui a uns dois anos...
E como conhaque era conhaque e trabalho era trabalho, Tê-Éle gostava de alternar, com vantagem nítida do lado do conhaque. O “petit monsieur” cedo se deixou embalar pelos torpores do álcool, já que a vida resolvera ser-lhe matreira.
— Sabe, Fernando, se as minhas pernas fossem um pouco mais compridas nunca teria sido pintor. O meu pai gostaria de me ver na carreira militar. Bah! Não se lhe pode ligar muito. Ele e a minha mãe são primos. Estava-se mesmo a ver que eu não podia sair normal.
Fernando António ouvia muito mais do que falava. Até porque o seu francês não era nada por aí além. Era mais “barra” em inglês, por causa de ter vivido na África do Sul.
Falar também não era o mais importante no dia de abertura do “Moulin Rouge”. Nicole Kidman, deslumbrante, excedeu todas as expectativas no seu número de sexo ao vivo com Tom Cruise e Ewan McGregor. Em delírio, Tê-Éle proclamou:
— Estão a ver? Dois rapazes pequenos em tamanho mas grandes em talento! Portugal é grande! Portugal é grande!
Fernando António agradeceu, fazendo notar, ainda assim, que Nicole era australiana, Cruise americano, McGregor escocês e o “Moulin Rouge” francês.
— Isso agora não interessa nada! País que tem o meu amigo como poeta só pode ser um grande país e dou-lhe as vivas que me apetecer! Viva Portugal! Viva a República!
Algumas horas e muitas garrafas de champanhe depois, Tê-Éle e Fernando António saíram abraçados, com o pintor impressionista muito impressionado com um catálogo sobre as rolinhas devassas de Paris.
— Olhe, Fernando, ouça-me com olhos de ver. A páginas tantas, melhor dizendo, a páginas 37 temos a Condessa de Charbannes, da Rue Delaborde, 46. Morda-me esta cena, por obséquio:
“Dizem os antigos historiadores que Nero estava determinado que todas as partes do seu corpo deviam ser defloradas e prostituídas. O seu exemplo foi seguido até aos dias correntes, mas duvidamos que tenha existido mais meritória discípula do que a senhora que ora referimos. Não existem mistérios do deboche que tenham segredos para ela; é o verdadeiro brinquedo do libertino que, nos seus mais selvagens sonhos e pesadelos de novidades eróticas e devassas posturas, jamais imaginou uma parceira mais adequada. É uma mulher baixa, corpulenta e bonita e parece ter cerca de trinta anos. Morena, com olhos intrigantes, boca ousada e boa figura, está bem preservada; e, quando vestida e à luz, parece ter pouco mais de vinte e cinco. Muitos amantes passaram já pelas suas coxas de marfim; príncipes e pobres já encheram a barriga, mas ela nunca pára. O dinheiro derrete-se nas suas mãos proporcionadas e viu-se tantas vezes despojada das suas mobílias que se tornou perita nos sofismas das leis relativas a inquilinos e senhorios. Apesar da vasta experiência, continua pronta a dar ouvidos a qualquer homem bem vestido e a sua surpreendente confiança na honestidade do sexo masculino leva-a a ser continuamente defraudada por gente sem escrúpulos. É grande amiga de Antoinette Duret e vão juntas à caça. O seu título de condessa é simplesmente fantástico”.
Então, Fernando, vamos nisto?
— Ó pequenino, sabe, a minha pátria é a língua portuguesa. Não sou muito de putas.
Tê-Éle encolheu os ombros, apesar de manifestamente chocado. O idiota do poeta português não gostava de lupanares! Podia lá ser! Um homem de cultura como ele... onde é que o mundo ia parar?
Ainda por cima em Paris, no dia de abertura do já famoso “Moulin Rouge”. Porque bastou o dia de abertura para o “Moulin Rouge” fazer saber ao Mundo que seria uma instituição para todo o sempre.
Como se não bastasse, Fernando António invadiu ainda a auto-estima de Tê-Éle com um comentário perfeitamente deslocado do clima de festa que se estava a viver:
— A sua pintura mete-me um bocado de impressão.
— É um bocado impressionista, é. Mas isso é secundário. As flausinas, meu amigo, isso é que conta. A vida corrói-me como um verme abjecto. Há que bebê-la até à última gota. Sabe o que é isso, cavalheiro?
— Sei.

Noite de luar. Tê-Éle e Fernando António cruzaram-se com o banda-desenhista jugoslavo Gradimir Smujda, que circulava agarrado à Condessa Latischeff (Rue de La Pépinière,11): “A melhor parte desta inteligente ave de rapina é o seu apartamento, mobilado com o melhor dos luxos e gostos”.
E foi para lá que se dirigiram, apesar da Condessa não ser aconselhável a quem gostasse de carnes frescas e não fosse particular adepto de produtos ressequidos, segundo diz o famoso guia dos prostíbulos parisienses.
— Fernando, deixe-me apresentar-lhe o Gradimir, um excelente homem, que fez um livro sobre mim: “Le bordel des muses”, editora Delcourt, 12 euros e 38, Fnac Chiado, 27/02/2004.
— Prefiro “Toulouse-Lautrec”, editora Taschen, Matthias Arnold, 5 euros e 85, Fnac Chiado, 24/10/2001 — respondeu Fernando, sem se aperceber da sua rispidez, para logo acrescentar:
— É um livro muito mais sério.
Tê-Éle ficou siderado, mas lá conseguiu responder que Gradimir já tinha vários prémios com o álbum “Vincent e Van Gogh”, inclusivamente no festival de BD da Amadora.
Fernando António apercebeu-se do seu erro e quis penitenciar-se de imediato, recitando um extracto do primeiro poema que lhe veio à cabeça, no caso “O mostrengo”, in “Mensagem”: “O mostrengo que está no fim do mar/na noite de breu ergueu-se a voar”.
Foi pior a emenda que o soneto (soneto é uma forma de dizer):
— Isso é uma indirecta para mim, Fernando? O mostrengo sou eu? Sou eu? Não se pode ser anão, rico e gostar de putas e pintura? O mostrengo sou eu, sou? Mas para pagar garrafas de champanhe já não sou mostrengo, pois não? E digo-te uma coisa, ó vate 69, foi a primeira vez este mês que me recusaram uma oferta de meretrizes! Não sei que educação é que te deram em Lisboa, mas eu nasci em berço de oiro e nunca recusei uma mulher na minha vida!
Fernando António ficou aflitíssimo, sentiu um calafrio na espinha, como daquela vez em que a ovelha “Dolly” recusou os avanços de Alberto Caeiro e se ofereceu autenticamente a Roberto Benigni, uma noite, na terra.
— Eu gosto muito de gajas, gosto, sim senhor. Se o Henri quiser, tenho muito gosto em dividir consigo uma meretriz, se pretender conceder-me o privilégio. Peço-lhe desculpa se, de alguma forma, afrontei a sua sensibilidade de artista genial. Não me julgue de maneira muito árdua, por favor. Eu sou um ser especial, como o Henri. Viajo pouco, bebo imenso, tenho uma vida sexual quase inexistente. Estas coisas pagam-se. Tenho o coração ao pé da boca e é frequente acordar com o travo a ventrículos. Desculpe-me, uma vez mais.
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Tê-Éle.
Assim como viera a tempestade, assim chegou a bonança.
— Amigo Fernando, eu é que peço desculpa. Se o amigo não quer pôr-se numa flausina esta noite, está no seu perfeitíssimo direito. Podia ter sido eu a recusar um prato de sardinhas numa noite de Santo António, no dia do seu aniversário. Em todo o caso, peço-lhe que continue connosco pela noite dentro.
— Amigo Henri, agora sou eu que insisto. A noite não acaba sem eu molhar o pincel em sua honra. Confio em si. E deixe-me recitar-lhe uma pequena parcela de “Mar português”: “Ó mar salgado, quando do teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/Quantos filhos em vão rezaram!/Quantas noivas ficaram por casar/para que fosses nosso, ó mar!”.
— É bonito, sim senhor! Há mar e mar, há ir e voltar. Está a ver? Eu também conheço o poema.
— Bem... isso não é deste poema. É do Alexandre...
— Ah!... pois evidentemente. Como pude confundir um poema macedónio do grande Alexandre com os versos do grande Fernando António?
Fernando António resolveu deixar seguir o diálogo, sob pena do engarrafamento intelectual ofuscar as estrelas de Paris. Para que o cachimbo da paz ficasse definitivamente fumado, Fernando permitiu que Tê-Éle lhe esportulasse a verba para um rendez-vous amoroso com Nesta Needham: “(...) Quando atravessou o canal, há cerca de três ou quatro anos atrás, acabara de atingir a maior idade e tomara a ambiciosa decisão de se transformar na mais brilhante prostituta da Europa. O seu début na arena da prostituição efectuou-se com alguma dificuldade e levou uma vida de boémia, oferecendo a sua estrutura magra a preços reduzidos aos frequentadores arruinados de locais de prazer como Spa, Ostend e Boulogne-sur-Mer (...). Esta senhora aprecia a bebida e bebe o seu amante, um homem de três garrafas, por baixo da mesa (...)”.
Diz a lenda que a experiência sexual de Fernando António não correu muito bem. Sentado num belo fauteil verde-alface, nu da cintura para baixo, Fernando insistia em declamar enquanto Nesta Needham afinava a alça dos seus lábios para uma felação eficiente. Ora, qualquer meretriz de alguma rodagem se deixaria desconcentrar com a declamação de “Ulisses”: “O mito é o nada que é tudo/O mesmo sol que abre os céus/É um mito brilhante e mudo/O corpo morto de Deus/Vivo e desnudo”.

Quando Tê-Éle acabou a função com a sua meretriz, deu com Nesta ainda em plena laboração/sucção com Fernando António.
— Ó Fernando, o amigo permita-me a pergunta: demora muito ou faz serão?
— Henri, não tenho controlo em meu membro. Deverá remeter a pergunta à diligente funcionária...
Henri procedeu em conformidade, enquanto a cabeça de Miss Needham se balançava cadenciadamente ao ritmo de uma nau a tentar vencer Adamastor.
— É desta, Nesta?
Nesta encolheu os ombros e lançou o olhar na direcção de Fernando António, em tom de reprovação. Percebia-se onde queria chegar. O poeta português não estava a colaborar minimamente. Tê-Éle desbravou o terreno:
— O corpo da mulher, um belo corpo de mulher; está a ver, isto não foi feito para o amor... é bonito de mais, não é?
Fernando António ficou perplexo. Nunca lhe tinha ocorrido pensar no assunto dessa forma. E foi no momento em que Miss Needham estava quase a desistir dos seus esforços, desviando o olhar momentaneamente para Tê-Éle, que Fernando António optou por se esvair de neves e açúcares em potentíssimo jacto que serpenteou em overdose pela aparelho esofágico da menina.
Apanhada de surpresa, após 35 minutos de aturado labor (doíam-lhe os joelhos, a garganta estava seca, os maxilares dormentes), não evitou um engasganço super-piramidal, que lhe provocou um ataque de tosse e lhe fez sair uma gota do precioso néctar do poeta pela narina esquerda, enquanto os olhos desatavam a lacrimejar sem dó (bemol).
Nasceu o dia.
Fernando António tinha as olheiras cavadas. Entrara em depressão pós-orgásmica. Os níveis de testosterona baixaram. Os níveis poéticos subiram.
— “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.
— A que propósito é que isso vem agora, Fernando?
— Saiu-me.
— Venha daí ao “bistrot”. Está na hora de um bom “café au lait” e um croissant.
Foram. Um gato preto roçou-se todo nas pernas de Henri de Toulouse-Lautrec-Monfa. Os animais sabem quem gosta deles. Henri sentou-se a uma mesa próxima da porta. Do fundo da sala, Suzanne Valadon sorriu-lhe. Não havia muitas mulheres que fossem ao mesmo tempo modelos e pintoras. Tê-Éle devotava-lhe um carinho muito especial.
Pouco depois, entrava no café um amigo português de Fernando António:
— Meu caro Mário!

Von Grazen, 9/7/2004, 03h55m