15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, dezembro 03, 2006

Molha a tua pena no meu mojito

Amanheceu. Fernando não tinha dormido. Passara a noite no campo, como Alberto Caeiro. Ainda cheirava a ovelha. Sentado à mesa da “Brasileira”, oferecia a sua palidez suavemente abigodada aos raios tímidos e frescos da alvorada.
O Chiado acordara sem grande vontade de trabalhar. Alguns pombos mais audazes tinham acostado na estátua de Luiz Vaz. O vate ignorava-os com snobismo olímpico. Ao fundo, o Tejo bocejava de portugalidade indiferente.
Fernando olhava para o branco imaculado da folha de papel e pensava para com os seus botões: “Quem sou eu, concretamente, agora? Está-me a apetecer escrever, mas não sei quem sou. Ora, é absolutamente impossível começar a escrever sem saber quem sou. Pelo menos antes das dez da manhã. Já não tenho vida para passar a noite no campo”.
Um jornaleiro conhecido cruzou o espaço territorial do multipoeta e disparou de forma sociável:
— Ora então muito bons dias, sôr Fernando. A trabalhar para o bronze?
Fernando devolveu os bons dias de uma forma o mais neutral possível. Ainda não tinha decidido que heterónimo vestir para o resto do dia. E sabe-se como é importante colocar a voz no princípio da jornada. O problema tinha tanto mais acuidade quanto se sabe o que Fernando sofria por não possuir uma voz própria, mas uma multiplicidade de dialectos interiores que o assaltavam sem respeito.
Uma senhora bem apessoada sentou-se de perna cruzada na mesa do lado. Pediu uma meia de leite ao Lopes. O Lopes regressou cinco minutos depois, com uma meia de leite, uma discreta erecção de homenagem e 80 gramas de neve cáspica uniformemente distribuída pelos ombros.
Fernando já rabiscara clandestinamente três ou quatro versos libertinos: “Ela sentou-se de perna cruzada/gaivota do Tejo de poiso fortuito/lançou-me um olhar de névoa e promessas/pedi um bagaço e suspirei”.
A meio da manhã, a senhora quebrou o gelo e apresentou-se: Jéssica Coelho, muito prazer. Tal era a sua graça. Fernando coçou a cabeça imaginariamente e acabou por responder ao acaso: Alexander Search, encantado. Descobriu-se por breves momentos, suspendeu por segundos o traseiro no espaço, persignou o olhar numa rasante à calçada portuguesa.
Estavam apresentados. Nessa altura, Fernando não sabia que Jéssica Coelho não passava de um dos muitos heterónimos de Ofélia, a versão libidinosa, para passear na Baixa e provocar os homens de uma Lisboa puritana e madraçamente dada a ignorar os prazeres da carne.
O poeta continuou imerso nas suas cogitações e decidiu que era melhor traduzir Jéssica para inglês, de modo a emparelhar sem medos com Alexander Search. Jessica Rabbit soava-lhe bem. E pensou: “Não é nada má. Só foi traçada assim”.
O sol interessou-se por Fernando e desceu sobre Lisboa de forma mais convidativa, a chamar turistas e fazer jus à fama mediterrânica da cidade. Fernando meteu a mão na algibeira e de lá tirou uma carta de um admirador americano, Ernest Hemingway.
“My dear fellow: este que te escreve grama à brava os teus desvarios literários. However, faz-te falta sol como deve ser e dois lotes de requebrado mulato. Porque não vens passar uma quinzena comigo, a Havana? Não te preocupes com os cobres. És meu convidado. Sobe-te para um vapor confortável e faz-te ao mar. Espero-te para trocar ideias e beber uns copos. Do teu: Ernesto”.
A ideia não era má. Mas Fernando tinha azar às saídas. Pelo que ouvira dizer, Lisboa não se podia comparar a Paris, Londres ou Nova Iorque. Mas era Lisboa, com mil diabos!
Experimentara uma ida a Portalegre, por causa de uma gráfica, mas as coisas tinham dado para o torto. A simples ideia de sair fazia-lhe confusão. Por outro lado, a viagem marítima poderia inspirar-lhe, quem sabe, uma ode. Dar-lhe a conhecer novos heterónimos. Por exemplo: Max Sailor (autor do poema “Gaivotas enterram Domingos Bomtempo”), Freddy Seagul (famoso pelo seu ensaio “Fernão Capelo Gaivota, estéticas revolucionárias na aerodinâmica das aves”) ou Joseph Konrádio (vencedor do prémio literário La Coupole, com o conto “Corações nas termas”).
O convite ficou a germinar-lhe pelos neurónios e não o deixou mais sossegar. Ofélia desaparecera sem deixar rasto, apesar de a atmosfera de Lisboa ainda cheirar a meia de leite. Pagou os 23 bagaços, o pires de amendoins, endireitou o laço e fez-se à estrada.
Uma semana depois estava a bordo do transatlântico “Durban”, navio imponente, de cores claras, muitas chaminés e alguma poesia à solta. A viagem correu tão bem quanto seria de esperar. O único percalço ocorreu já na parte final. O proprietário do camarote “Delfim”, também escritor (de seu nome Alexandre Runas) propôs-lhe um duelo de heterónimos e Fernando caiu na asneira de aceder. O Chevalier não durou dez segundos às mãos de D’Artagnan. Mas um homem só tem uma palavra. No dia seguinte, Runas recebia como pagamento “O livro do desassossego”.
Fernando chegou a Havana num dia quente. Depois descobriu que era mesmo assim. À sua espera estava um miúdo de ar sorridente, que afirmava ser amigo do “Papa”. Estranhou. As relações entre o Vaticano e as crianças pareceram-lhe muito dúbias e forçadas. Só mais tarde compreendeu que o “Papa” era o amigo Ernesto. Uma espécie de Ti Ernesto em versão habanera.
— A pesca para mim é uma religião — disse-lhe Hemingway num fim de tarde.
Estava explicado o epíteto de “Papa”.
— Vais ficar aqui num quarto do meu hotel. No quinto piso, para ficares perto de mim e podermos trocar ideias literárias quando quiseres. Também tenho uma quinta, com quatro cães e 57 gatos.
Nessa noite Fernando não dormiu. Passou horas a fazer cálculos, tentando encontrar o significado cabalístico de uma série de operações aritméticas que envolviam 4 e 57. Só de manhã percebeu que se tinha esquecido de juntar o 5 (quinto piso do hotel).
— Tens a lua em Vénus, mas ainda não é bem definitivo, porque me esqueci do 5 — disse ele para o Ti Ernesto, quando se encontraram para tomar o pequeno-almoço.
Depois foram até ao bar “La Floridita”, onde o Ti Ernesto era muito conhecido e costumava ler o jornal. Fernando aproveitou para criar mais meia-dúzia de heterónimos com nomes de “cocktails”: Alberto Cuba-Livre, Bernardo Blue-Coração, Álvaro Screwdriver, Alexandre G. Tónico.
Hemingway despachou 12 daikiris com carácter de urgência.
— Olha lá, tu deves estar habituado a estas coisas, mas quanto a mim devias ter cuidado com os emborcanços. Olha que isso não é bagaço. O que vale é que eu viajo sempre com as minhas garrafinhas do dito, como a Angelina Antas Ruiz.
— Quem?
— É uma escritora da Pasteleira. Não leste “Os putos prateados”?
— Não, ainda não cheguei aos escritores portugueses e já tenho 8 mil volumes na minha biblioteca.
— Isso é muito livro.
— Pois. Mas sabes que na pesca se passa muito tempo sem fazer nada.
— Então e na caça ?
— Na caça só leio à noite, ao pé da fogueira.
Fazia sentido. De sentido em sentido, Fernando converteu-se aos hábitos alcoólicos de Hemingway e em menos de uma semana já era conhecido como “o amigo espanhol” do Ti Ernesto.
Espantou-se com tantas fotografias do Ti Ernesto nas paredes do “La Floridita”, ao lado de gente como Errol Flynn, Spencer Tracy, Gary Cooper.
— Quem são estes à tua beira? São os teus heterónimos?
— É rapaziada do cinema, que também gosta de uma boa pândega.
— As caras deles não me são estranhas. Tens a certeza de que não tens aqui nenhum heterónimo?
— Most sure, bloody hell ! Já não tenho heterónimos. Bastards, não pagavam as quotas, só queriam andar comigo na borga.
— Os meus heterónimos não pagam quotas. Basta preencher a ficha de inscrição.
— Vamos lá até à “Bodeguita del Medio”, que me está a apetecer um mojito...
— Estou a pensar numa coisa: se calhar não era má ideia começar a partir os bagaços com rum, quando chegar a Lisboa...
E a vida era assim em Havana. Hotel, “Floridita”, “Bodeguita del Medio”, uns passeios de barco (“Ai aquilo é que é o merlim azul? Também há de outras cores ?”), umas cenas de caça (“não quero, Ernesto, não quero, não insistas. O coice da arma ainda me dava cabo da Maria José”), umas voltas de Chevy (“os carros daqui dão para meter a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian e ainda sobra espaço para gajas”), duas de conversa sobre literatura.
— E pronto. Escrevi “O Velho e o Mar”, baseado numa história real com o velho Gregório.
— Tens a certeza que o velho Gregório passou mesmo por isso?
— Ó Fernando (hoje és o Fernando, não és? Diz lá, pá, sinceramente, sabes que eu vou com todos), palavra de honra! Claro, se fores perguntar aos meus biógrafos, claro que eles não confessam, só para contrariar.
Não obstante a suprema resistência aos vapores etílicos, de 15 em 15 dias Ti Ernesto e Fernandinho apanhavam uma bebedeira literária a sério, de entrar para os anais do Nobel, do Pulitzer e de mais uma dezena de prémios literários. Geralmente, era o Ti Ernesto que carregava o Fernandinho até ao hotel.
— E fica sabendo que sou muito melhor escritor que tu. És um palhaço que passa a vida a fazer mal aos animais, a caçar e a pescar. Tu nem sequer tens asterónimos! E tenho quase a certeza que comemos um dos teus gatos lá na quinta, a semana passada. Larga-me, quero chamar ao Gregório...
— Fernando, continuas assim e eu meto-te no primeiro barco de volta a Madrid. Sabes que sou um gajo porreiro, mas tudo tem limites.
No dia seguinte, Fernando olhava para Hemingway com um ar envergonhado e dizia:
— Ernesto, estiveram a contar-me que saíste ontem com o Caeiro e que ele se portou mal. Queria pedir-te desculpa por ele. É um boçal, passa a vida metido com as ovelhas, só lê Teixeira de Pascoaes, sabes como é...
— Never mind. Vou-te dizer uma coisa. Pelo preço de um quarto no hotel, fiquei a conhecer uma molhada de amigos.
Dias mais tarde, Fernando embarcou de volta para Lisboa. Coincidência das coincidências, o paquete “Massagem” acolhia no camarote “Orgias” o escritor Alexandre Runas. Desta vez, Fernando não arriscou. Gastou três dias a estudar os movimentos de Porthos, Athos e Aramis e depois lançou os seus heterónimos ao ataque, à saída da sala de ténis de mesa. Não recuperou “O livro do desassossego”, mas pelo menos vingou-se.
No dia seguinte foi interpelado por Runas, numa cadeira ao lado da piscina:
— Ó amigo, por acaso não viu os meus mosqueteiros?
— Olhe, atiraram-se ontem ao oceano, depois do folhetim da Emissora Nacional...
— Não me diga...
— Ah! pois. Dói, não dói ?
O resto da viagem decorreu sem notas dignas de registo. Apesar do mau tempo no canal e dos monólogos de um solitário passageiro açoriano, que vinha sempre importunar Pessoa com as suas memórias na hora de recolher ao quarto:
— Se bem me lembro...
Foi com redobrada emoção que Fernando se sentou na sua mesa habitual da “Brasileira” e reencontrou o sorriso do Lopes, fértil em cáries, mas fiel de fraternidade:
— Pois é, sôr Fernando. Venderam o “Martinho” aos espanhóis. É a mundialização... então e Cuba, que tal?
— É plana.
A seguir trouxeram um javali e amordaçaram o bardo. Tudo voltou à normalidade na aldeia que resistia ainda e sempre ao invasor da realidade.

Von Grazen, 28/2/2003, 05h10m

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