15 desatinónimos para Fernando Pessoa

terça-feira, janeiro 02, 2007

Paris é uma festa

Podiam lá falhar uma coisa daquelas!
No dia 5 de Outubro de 1889 (ainda não era feriado em Portugal) abriu o “Moulin Rouge”. O conde Henri de Toulouse-Lautrec-Monfa, muito senhor do seu nariz e de uma estatura moral de 1 metro e 52, compareceu. Obviamente acompanhado pelo seu novo amigo português, Fernando António.
— Sabe, Fernando, vou fazer um cartaz sobre o estabelecimento. Mas gosto de fazer as coisas calmamente. Só deve estar pronto daqui a uns dois anos...
E como conhaque era conhaque e trabalho era trabalho, Tê-Éle gostava de alternar, com vantagem nítida do lado do conhaque. O “petit monsieur” cedo se deixou embalar pelos torpores do álcool, já que a vida resolvera ser-lhe matreira.
— Sabe, Fernando, se as minhas pernas fossem um pouco mais compridas nunca teria sido pintor. O meu pai gostaria de me ver na carreira militar. Bah! Não se lhe pode ligar muito. Ele e a minha mãe são primos. Estava-se mesmo a ver que eu não podia sair normal.
Fernando António ouvia muito mais do que falava. Até porque o seu francês não era nada por aí além. Era mais “barra” em inglês, por causa de ter vivido na África do Sul.
Falar também não era o mais importante no dia de abertura do “Moulin Rouge”. Nicole Kidman, deslumbrante, excedeu todas as expectativas no seu número de sexo ao vivo com Tom Cruise e Ewan McGregor. Em delírio, Tê-Éle proclamou:
— Estão a ver? Dois rapazes pequenos em tamanho mas grandes em talento! Portugal é grande! Portugal é grande!
Fernando António agradeceu, fazendo notar, ainda assim, que Nicole era australiana, Cruise americano, McGregor escocês e o “Moulin Rouge” francês.
— Isso agora não interessa nada! País que tem o meu amigo como poeta só pode ser um grande país e dou-lhe as vivas que me apetecer! Viva Portugal! Viva a República!
Algumas horas e muitas garrafas de champanhe depois, Tê-Éle e Fernando António saíram abraçados, com o pintor impressionista muito impressionado com um catálogo sobre as rolinhas devassas de Paris.
— Olhe, Fernando, ouça-me com olhos de ver. A páginas tantas, melhor dizendo, a páginas 37 temos a Condessa de Charbannes, da Rue Delaborde, 46. Morda-me esta cena, por obséquio:
“Dizem os antigos historiadores que Nero estava determinado que todas as partes do seu corpo deviam ser defloradas e prostituídas. O seu exemplo foi seguido até aos dias correntes, mas duvidamos que tenha existido mais meritória discípula do que a senhora que ora referimos. Não existem mistérios do deboche que tenham segredos para ela; é o verdadeiro brinquedo do libertino que, nos seus mais selvagens sonhos e pesadelos de novidades eróticas e devassas posturas, jamais imaginou uma parceira mais adequada. É uma mulher baixa, corpulenta e bonita e parece ter cerca de trinta anos. Morena, com olhos intrigantes, boca ousada e boa figura, está bem preservada; e, quando vestida e à luz, parece ter pouco mais de vinte e cinco. Muitos amantes passaram já pelas suas coxas de marfim; príncipes e pobres já encheram a barriga, mas ela nunca pára. O dinheiro derrete-se nas suas mãos proporcionadas e viu-se tantas vezes despojada das suas mobílias que se tornou perita nos sofismas das leis relativas a inquilinos e senhorios. Apesar da vasta experiência, continua pronta a dar ouvidos a qualquer homem bem vestido e a sua surpreendente confiança na honestidade do sexo masculino leva-a a ser continuamente defraudada por gente sem escrúpulos. É grande amiga de Antoinette Duret e vão juntas à caça. O seu título de condessa é simplesmente fantástico”.
Então, Fernando, vamos nisto?
— Ó pequenino, sabe, a minha pátria é a língua portuguesa. Não sou muito de putas.
Tê-Éle encolheu os ombros, apesar de manifestamente chocado. O idiota do poeta português não gostava de lupanares! Podia lá ser! Um homem de cultura como ele... onde é que o mundo ia parar?
Ainda por cima em Paris, no dia de abertura do já famoso “Moulin Rouge”. Porque bastou o dia de abertura para o “Moulin Rouge” fazer saber ao Mundo que seria uma instituição para todo o sempre.
Como se não bastasse, Fernando António invadiu ainda a auto-estima de Tê-Éle com um comentário perfeitamente deslocado do clima de festa que se estava a viver:
— A sua pintura mete-me um bocado de impressão.
— É um bocado impressionista, é. Mas isso é secundário. As flausinas, meu amigo, isso é que conta. A vida corrói-me como um verme abjecto. Há que bebê-la até à última gota. Sabe o que é isso, cavalheiro?
— Sei.

Noite de luar. Tê-Éle e Fernando António cruzaram-se com o banda-desenhista jugoslavo Gradimir Smujda, que circulava agarrado à Condessa Latischeff (Rue de La Pépinière,11): “A melhor parte desta inteligente ave de rapina é o seu apartamento, mobilado com o melhor dos luxos e gostos”.
E foi para lá que se dirigiram, apesar da Condessa não ser aconselhável a quem gostasse de carnes frescas e não fosse particular adepto de produtos ressequidos, segundo diz o famoso guia dos prostíbulos parisienses.
— Fernando, deixe-me apresentar-lhe o Gradimir, um excelente homem, que fez um livro sobre mim: “Le bordel des muses”, editora Delcourt, 12 euros e 38, Fnac Chiado, 27/02/2004.
— Prefiro “Toulouse-Lautrec”, editora Taschen, Matthias Arnold, 5 euros e 85, Fnac Chiado, 24/10/2001 — respondeu Fernando, sem se aperceber da sua rispidez, para logo acrescentar:
— É um livro muito mais sério.
Tê-Éle ficou siderado, mas lá conseguiu responder que Gradimir já tinha vários prémios com o álbum “Vincent e Van Gogh”, inclusivamente no festival de BD da Amadora.
Fernando António apercebeu-se do seu erro e quis penitenciar-se de imediato, recitando um extracto do primeiro poema que lhe veio à cabeça, no caso “O mostrengo”, in “Mensagem”: “O mostrengo que está no fim do mar/na noite de breu ergueu-se a voar”.
Foi pior a emenda que o soneto (soneto é uma forma de dizer):
— Isso é uma indirecta para mim, Fernando? O mostrengo sou eu? Sou eu? Não se pode ser anão, rico e gostar de putas e pintura? O mostrengo sou eu, sou? Mas para pagar garrafas de champanhe já não sou mostrengo, pois não? E digo-te uma coisa, ó vate 69, foi a primeira vez este mês que me recusaram uma oferta de meretrizes! Não sei que educação é que te deram em Lisboa, mas eu nasci em berço de oiro e nunca recusei uma mulher na minha vida!
Fernando António ficou aflitíssimo, sentiu um calafrio na espinha, como daquela vez em que a ovelha “Dolly” recusou os avanços de Alberto Caeiro e se ofereceu autenticamente a Roberto Benigni, uma noite, na terra.
— Eu gosto muito de gajas, gosto, sim senhor. Se o Henri quiser, tenho muito gosto em dividir consigo uma meretriz, se pretender conceder-me o privilégio. Peço-lhe desculpa se, de alguma forma, afrontei a sua sensibilidade de artista genial. Não me julgue de maneira muito árdua, por favor. Eu sou um ser especial, como o Henri. Viajo pouco, bebo imenso, tenho uma vida sexual quase inexistente. Estas coisas pagam-se. Tenho o coração ao pé da boca e é frequente acordar com o travo a ventrículos. Desculpe-me, uma vez mais.
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Tê-Éle.
Assim como viera a tempestade, assim chegou a bonança.
— Amigo Fernando, eu é que peço desculpa. Se o amigo não quer pôr-se numa flausina esta noite, está no seu perfeitíssimo direito. Podia ter sido eu a recusar um prato de sardinhas numa noite de Santo António, no dia do seu aniversário. Em todo o caso, peço-lhe que continue connosco pela noite dentro.
— Amigo Henri, agora sou eu que insisto. A noite não acaba sem eu molhar o pincel em sua honra. Confio em si. E deixe-me recitar-lhe uma pequena parcela de “Mar português”: “Ó mar salgado, quando do teu sal/São lágrimas de Portugal!/Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/Quantos filhos em vão rezaram!/Quantas noivas ficaram por casar/para que fosses nosso, ó mar!”.
— É bonito, sim senhor! Há mar e mar, há ir e voltar. Está a ver? Eu também conheço o poema.
— Bem... isso não é deste poema. É do Alexandre...
— Ah!... pois evidentemente. Como pude confundir um poema macedónio do grande Alexandre com os versos do grande Fernando António?
Fernando António resolveu deixar seguir o diálogo, sob pena do engarrafamento intelectual ofuscar as estrelas de Paris. Para que o cachimbo da paz ficasse definitivamente fumado, Fernando permitiu que Tê-Éle lhe esportulasse a verba para um rendez-vous amoroso com Nesta Needham: “(...) Quando atravessou o canal, há cerca de três ou quatro anos atrás, acabara de atingir a maior idade e tomara a ambiciosa decisão de se transformar na mais brilhante prostituta da Europa. O seu début na arena da prostituição efectuou-se com alguma dificuldade e levou uma vida de boémia, oferecendo a sua estrutura magra a preços reduzidos aos frequentadores arruinados de locais de prazer como Spa, Ostend e Boulogne-sur-Mer (...). Esta senhora aprecia a bebida e bebe o seu amante, um homem de três garrafas, por baixo da mesa (...)”.
Diz a lenda que a experiência sexual de Fernando António não correu muito bem. Sentado num belo fauteil verde-alface, nu da cintura para baixo, Fernando insistia em declamar enquanto Nesta Needham afinava a alça dos seus lábios para uma felação eficiente. Ora, qualquer meretriz de alguma rodagem se deixaria desconcentrar com a declamação de “Ulisses”: “O mito é o nada que é tudo/O mesmo sol que abre os céus/É um mito brilhante e mudo/O corpo morto de Deus/Vivo e desnudo”.

Quando Tê-Éle acabou a função com a sua meretriz, deu com Nesta ainda em plena laboração/sucção com Fernando António.
— Ó Fernando, o amigo permita-me a pergunta: demora muito ou faz serão?
— Henri, não tenho controlo em meu membro. Deverá remeter a pergunta à diligente funcionária...
Henri procedeu em conformidade, enquanto a cabeça de Miss Needham se balançava cadenciadamente ao ritmo de uma nau a tentar vencer Adamastor.
— É desta, Nesta?
Nesta encolheu os ombros e lançou o olhar na direcção de Fernando António, em tom de reprovação. Percebia-se onde queria chegar. O poeta português não estava a colaborar minimamente. Tê-Éle desbravou o terreno:
— O corpo da mulher, um belo corpo de mulher; está a ver, isto não foi feito para o amor... é bonito de mais, não é?
Fernando António ficou perplexo. Nunca lhe tinha ocorrido pensar no assunto dessa forma. E foi no momento em que Miss Needham estava quase a desistir dos seus esforços, desviando o olhar momentaneamente para Tê-Éle, que Fernando António optou por se esvair de neves e açúcares em potentíssimo jacto que serpenteou em overdose pela aparelho esofágico da menina.
Apanhada de surpresa, após 35 minutos de aturado labor (doíam-lhe os joelhos, a garganta estava seca, os maxilares dormentes), não evitou um engasganço super-piramidal, que lhe provocou um ataque de tosse e lhe fez sair uma gota do precioso néctar do poeta pela narina esquerda, enquanto os olhos desatavam a lacrimejar sem dó (bemol).
Nasceu o dia.
Fernando António tinha as olheiras cavadas. Entrara em depressão pós-orgásmica. Os níveis de testosterona baixaram. Os níveis poéticos subiram.
— “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.
— A que propósito é que isso vem agora, Fernando?
— Saiu-me.
— Venha daí ao “bistrot”. Está na hora de um bom “café au lait” e um croissant.
Foram. Um gato preto roçou-se todo nas pernas de Henri de Toulouse-Lautrec-Monfa. Os animais sabem quem gosta deles. Henri sentou-se a uma mesa próxima da porta. Do fundo da sala, Suzanne Valadon sorriu-lhe. Não havia muitas mulheres que fossem ao mesmo tempo modelos e pintoras. Tê-Éle devotava-lhe um carinho muito especial.
Pouco depois, entrava no café um amigo português de Fernando António:
— Meu caro Mário!

Von Grazen, 9/7/2004, 03h55m

1 Comments:

  • Obrigado, Nuno!
    Como vês, esta "refinaria", "refinação" ou "refinesse" já é de 2004.
    Este conto foi inspirado pela leitura de "Le bordel des Muses", o álbum de BD do Smujda. E depois fui repescar o catálogo de meninas do "As rolinhas devassas de Paris", um paperback um bocadinho maior da Europa-América, escrito por um grupo de anónimos, na colecção dos clássicos eróticos. Há nesta colecção muita coisa boa que anda para aí ignorada.
    Por acaso acho que estes "15 desatinónimos para Fernando Pessoa" são o meu melhor livro de contos.
    Ultimamente só me têm saído poemas.
    Ainda hoje falei de ti. Fui a Rio Maior ver um jogo de andebol da selecção, à boleia do "Record". E havia "feijoada de caracóis" no restaurante, um dos pratos-fetiche do Armindo Silva, que já estava a salivar perante a perspectiva de ir ao "Zé Elias".
    Foi naquele magnífico encontro que organizaste no Verão de 1996. E que entre muitas outras coisas me proporcionou o nascimento da amizade com o Rui Manuel Amaral.
    E quando quiseres podes parar o tempo com a tua escrita.
    Apesar de saber bem que andas ocupado em tornar o tempo mágico para as crianças. Serviço público bem feito!
    Fica "a obra" para trás, como diria o meu amigo Paulo Brito e Abreu.
    Grande abraço e volta sempre.
    Ainda há material para mais umas semanas aqui no "15 desatinónimos".

    By Anonymous Anónimo, at 4:36 da manhã  

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