Sei não, cogitou seu Caeiro, no tranquilo do campo.
Esse tal do Sindicato dos Escritores Profissionais da Amazónia seria legal? Pô, eu quero mais é ficar por aqui, cuidando da criação e dando ração para eles: Bernardinho, Álvarito, Ricardão. Meu rebanho, viu?
ZÓING. ACTIVAR CONVERSOR, POR OBSÉQUIO.
Um incómodo. Largar tudo e acorrer ao convite do Sindicato dos Escritores Profissionais do Amazonas era uma coisa que Alberto Caeiro considerava problemática. Gostava pouco de se deslocar. Depois, Manaus era no fim do mundo.
Mas como o presidente José Ribamar Mitoso tinha sido tão simpático, seria indelicado recusar um convite sobremaneira bem-intencionado. O intercâmbio cultural entre Portugal e Brasil não podia ser desprezado. Até porque os rurais devem ajudar-se. Claro que Manaus já era uma grande cidade, mas de certa forma ainda vivia uma provinciana ruralidade.
Havia outro factor. Tinham ficado a bailar-lhe no cimo do cajado uns versos provenientes do Brasil, já não sabia de quem: “Os homens são banais/em suas abstracções/sem nexo/Os amigos/são legais/mas não fazem sexo”. Era quase certo que estes versos eram amazonenses, mas de quem? Do próprio Ribamar Mitoso?
Era uma terrível chatice não se lembrar, mas a vida do campo é tão sossegada que um guardador de rebanhos não tem margem para se organizar como deve ser ao mínimo sinal de inquietação.
Estava nestes considerandos quando o Zé Pedal (o carteiro da povoação) lhe trouxe mais uma carta, saindo da bicicleta com um sorriso de orelha a orelha, após mais uma exibicionista derrapagem controlada que levantou uma enorme nuvem de poeira.
Caeiro, encostado ao tronco de uma árvore frondosa, não achou piada nenhuma àquilo, mas já sabia que não adiantava de nada protestar. O Zé Pedal era jovem e tinha uma irresistível tendência para o exibicionismo. Até ao dia em que batesse com os cornos em algo duro ou um touro mais envinagrado lhe metesse os chifres pelo traseiro acima.
— Carta, Ti Caêro. Atão os carnêros, tudo na paz do Senhor?
— Tudo. Obrigado. Vê lá se andas mais devagar, rapaz.
— Um carteiro não tem vagar para andar devagar, Ti Caêro. A gente tem de dar ao pedal. As cartas têm de ser entregues com velocidade.
Alberto Caeiro fez que sim com a cabeça e o Zé Pedal lá saiu a toda a brida.
Olha, olha. Mais uma carta do Brasil. Isto é moda, não haja dúvidas. Ao olhar para o remetente, os olhos de Caeiro encheram-se de “irish mist” (brumas irlandesas, para quem não saiba irlandês). Mais do que de névoas húmidas portuguesas. O poeta tinha uma costela bem vincada de “irish afection countryside”. Quer dizer, uns afectos muito particulares e rurais. Irlandeses. Porque havia dois países com indiscutível veia poética: Portugal e Irlanda. Dos trigais portugueses subiam poemas aos céus todos os dias. E pelo meio dos trevos irlandeses rastejavam brumas e versos todas as madrugadas. E assim mesmo é que era bonito.
A carta vinha de um “pen friend” que não conhecia pessoalmente, ou seja, em Pessoa. Um “pen friend” é um amigo com quem as pessoas se correspondem. É favor não confundir com coleccionadores de canetas. Eu sei que a gente da cidade sabe estas coisas, mas para a malta do campo é conveniente falar devagar. Até por causa do calor.
“Estou sabendo que o amigo está de caminho para Manaus, a convite de Ribamar Mitoso. Disponha de meus modestos acomodamentos. Meu lar é simples, mas terei o máximo gosto em o receber. Será oportunidade para nos entroncarmos de afectos, descobrir nossas filiações poéticas intrínsecas. Se fôr de seu agrado, terei máximo prazer em lhe mostrar os pontos mais valiosos da cidade. Aguardo sua resposta. Receba um abraço grande, do seu:
Guimarães de Paula”.
Ai o caraças! Agora é que não dava mesmo para dizer não. Guimarães de Paula era um bom homem. Ganhara um prémio de poesia, mas nunca lhe publicaram “Os rebanhos da fuga”, uma obra construída ao longo de 40 anos. Nascido em Manacapuru, amazonense puro e idealista, tinha abdicado de ser escritor profissional por questões de sobrevivência. Era funcionário da Petrobrás. Fernando António vivia uma situação semelhante.
Guimarães, filho de Seu Raimundo e de D. Palmira, era um homem simples. Nunca se pusera em bicos de pés para publicar a sua poesia. Foi Guimarães de Paula quem fundou o Clube da Madrugada, que deu início ao Modernismo no Amazonas. Tinha tanto mais valor quanto era um autodidacta sem formação.
Alberto Caeiro meteu umas roupas na mala, pediu ao amigo Roberto Carneiro que se encarregasse temporariamente do mister da educação do seu rebanho, e infiltrou-se no Jumbo da Varig, algo receoso.
A viagem foi assim-assim. Caeiro entreteve-se a descobrir nuvens com forma de carneiros e ovelhas, enquanto a sua companheira de viagem, Teresa Rilhafoles, via nuvens em forma de baú por todo o céu.
À chegada, o átrio do aeroporto tinha uma pequena delegação à sua espera. Uma menina sardenta, de olhos azulados, mostrava um pequeno cartaz: “Seu Caeiro, aqui, por favor”.
Seu Caeiro aqui por favor deu-lhe dois beijinhos:
“Gostas de chocolates, pequena? Pois olha, estás com azar. O Álvaro ficou em Lisboa, a tomar conta da tabacaria. Mas pago-te um suco de côco, se quiseres”.
— Coco já não tem acento circunflexo, seu Caeiro!
— Não sejas contumeliosa, pequena. Percebo muito mais de cocos do que tu. Olha, toma lá os cocos que há: babão, baboso, cabeçudo, catulé, da baía, da praia, da quaresma, da serra, de catarro, de colher, de espinho, de indalá, de iri, de macaco, de palmeira, de praia, de purga, de rola, de vassoura, de zambê.
— E ainda faltam o coco-macaúba, o coco-naiá, o coco-peneruê e o coco-pindoba.
— E sabes o que é um coelho-rochense?
— Isso não, seu Caeiro.
— Pois olha, é habitante ou natural de Coelho da Rocha.
— Pôxa, seu Caeiro. Sabe demais! Onde é Coelho da Rocha?
— No Brasil não faço ideia. Em Lisboa é em Campo de Ourique.
A pequena conduziu Caeiro para uma carrinha e depositou-o numa esplanada. Alberto ainda estava à procura de coordenadas quando uma enorme salva de palmas se fez ouvir.
Um grupo de umas trinta almas aplaudia o poeta com genuína admiração. Depois, duas poetisas amazonenses ofereceram-lhe um enorme ramo de flores e convidaram-no a sentar-se à sombra, na cabeceira de um aglomerado de mesas de tampo verde, previamente dispostas.
Quem eram as poetisas? Mulheres de enorme alma poética, semelhante a Sophia ou Florbela. Os seus nomes? Querem saber tudo, não é? Está bem. Pois fiquem sabendo que se tratava de Lisiê Silva e Rose Clement.
Não conhecem como? Estão a gozar? Não?..
Bem, então a partir de agora ficam a saber que Lisiê Silva é poetisa amazonense de Manaus com direito a sítio e tudo. Qual sítio? Não é o sítio do picapau amarelo, olha que coisa. É sítio da rede. Não, nada disso. Tem um site na Net, prontos.
Um site muito cuidado. Abre-se o site e toca o “Borbujas de amor”, do Juan Luís Guerra. E há corações a voar por tudo quanto é sítio. Lisiê é “fascinada por paisagens naturais, pôr-do-sol, arco-íris, cachoeira, água, chuva, plantas, árvores, frutas, enfim, tudo o que faz parte da Natureza”. Profissionalmente é webmaster e webdesigner, mas poetiza umas coisas. Até teve o poema “Eu” escolhido para figurar na antologia “Poetas ocultos do Estado do Amazonas”.
Não se chegou a perceber se Lisiê Silva estava mais próxima do Sindicato Profissional dos Escritores do Amazonas ou da Associação dos Escritores do Amazonas. E ainda há Federações de escritores em Brasília e muitas agremiações mais. A poesia e a filiação clubística andam de braço dado num país de poetas, como Portugal e a Irlanda.
Rose Clement também tinha um site cuidado e foi com ela que Alberto Caeiro engraçou assim de repente:
— Sabe, eu nasci em Manaus, quando a cidade pouco conhecia asfalto e shoppings. Eram dias de missas fervorosas de domingo, folclore alegre e verdadeiro, tartarugadas aos domingos, peixe grande assado na brasa, nossos pratos típicos tão festivos, naquela vida simples que ia correndo doce como rapadura — confessou Rose, que tinha um sorriso sem espinhos.
— Maravilha! Olhe, o Guimarães não está por aí à minha espera?
— Não. Mandou dizer que só chega a Manaus daqui a três dias. Imponderáveis. Mas não se preocupe. Vamos tornar a sua estada o mais agradável possível. Antes de mais, vou recitar-lhe um poema meu, que se chama “Mercado Municipal”:
“No mercado grande o peixe/tem tamanho respeitável./É quando quem vende enrola/filé que dá bola,/que com grito meio amável/vende frescura no peixe.
Vê-se campos de bananas,/sol a dourar-se no milho,caminhos de macaxeiras,/vê-se alegres cozinheiras,/dando calor a um filho,/balançando as frigideiras.
Das frutas quer-se os segredos,/das folhagens, a promessa/que ervas, sim, tudo cura/e que qualquer criatura,/mesmo sem a fé expressa,/levará a crença nos dedos.
É mercadão e é retrato/da Manaus jovem senhora,/que o sol de selva, amarela,/abre portas e janelas/daquele que desde outrora/garante peixe no prato”.
— Minha cara Rose, a sua poesia é do mais apetitoso que tenho ouvido!
— ‘Brigada, viu, seu Caeiro!
— Trate-me por Berto, por amor de Deus! Vamos deixar-nos de cerimónias.
Estava o recém-descoberto Berto a fazer-se de olhares libidinosas a Rose (l’important c’est la rose, não é verdade?) quando uma voz forte invadiu a esplanada:
— “Sôfrega, alçando o hirto esporão guerreiro,/Zarpa.A íngreme cordoalha úmida fica.../Lambe-lhe a quilha a espúmea onda impudica/E ébrios tritões, babando, haurem-lhe o cheiro
Na glauca artéria equórea ou no estaleiro/Ergue a alta mastreação,que o éter indica,/E estende os braços de madeira rica/Para as populações do mundo inteiro!
Aguarda-a a ampla reentrância de angra horrenda
Pára e, a amarra agarrada à âncora,sonha!/Mágoas, se as tem, subjugue-as ou disfarce-as...
E não haver uma alma que lhe entenda/A angústia transoceânica medonha/No rangido de todas as enxárcias!”.
Caeiro ficou zonzo de tanta palavra desconhecida das gentes do campo. Sentiu saudades do Dicionário Torrinha e apeteceu-lhe de ânsias um shot de licor de alperce, lá do quintal, sem corantes nem conservantes.
Finalmente, encheu-se de coragem e levantou-se para cumprimentar o senhor que acabara de chegar em grande estilo:
— Mestre, permita que lhe ofereça esta “Nau” como pequena oferenda de chegada, embora em não seja um dos reis magos, muito menos um rei ou um mago. Mas gostaria que soubesse: farei todos os esforços para que seja um rei em Manaus, ao ponto de ir de regresso a Portugal a chamar-me mago — disse Augusto dos Anjos, envolvendo Caeiro num abraço quebra-ossos, à Bud Spencer.
Merda, se isto é tudo amizade, venham de lá os inimigos, pensou Alberto, que sorriu de nariz franzido pelas vicissitudes da vida quando Augusto o libertou, 30 segundos brasileiros depois. Quanto à “Nau”, quando ele era pequeno era uma água de colónia. Mas era inegável que a poesia de Augusto dos Anjos tinha um perfume rico e muito menos volátil que a “Nau” para acalmar as barbas rijas.
Rose introduziu Augusto dos Anjos:
— Berto, não se assuste com Augusto. Ele é mesmo assim. Sabe, ele cortou o próprio dedo para a capa de um livro já impresso. Já não tinha dinheiro para tinta. Ficou o título escrito em sangue: EU.
— Eu sou o Hamlet dos trópicos. A minha poesia é exagerada, está cheia de desesperos confessionais de um eu patológico e expressionista. Sou genial, mas tenho lampejos de um certo mau gosto e exageros barrocos. Estou centrado num certo naturalismo escandaloso e numa obsessão patológica.
— Não diga isso! — acamaradou Alberto Caeiro, tentando ser agradável.
— Não sou eu que digo. São os meus críticos — esclareceu Augusto, sentando-se ao lado de Caeiro e pedindo uma cerveja.
Pouco depois, chegou o último poeta: Cruz e Sousa, um “negão” com bom aspecto, filho de dois escravos de Florianópolis, em tempos chamada de Destêrro.
— Olha, vem aí o Poeta Negro! Senta aqui, Cruz, já aqui temos seu Caeiro, em carne e osso! — exclamou Augusto.
Cruz e Sousa, olhar marcado pela tuberculose e pelas dificuldades da vida, cumprimentou Caeiro com devoção e sentou-se com um sorriso ao mesmo tempo triste, meigo e esperançado.
— Anima aí, João, todo o mundo anda dizendo bem de seus “Broquéis”! Olha só, gente como Goulart de Andrade, Hermes Fontes, Adolfo Caminha, Cecília Meireles, Alphonsus de Guimarães, Silveira Netto, Murilo Araújo, Andrade Muricy, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Souza Bandeira, Elói Pontes, Nestor Victor.
Os nomes que Augusto proferiu, ao estilo de equipa de futebol, ficaram a bater no cérebro de Caeiro. Rapidamente imaginou que Souza Bandeira bem podia ser um heterónimo partilhado por Cruz e Sousa e Manuel Bandeira. E que Alphonsus de Guimarães bem podia ser um heterónimo de Guimarães de Paula. Mas esta rapaziada não tinha muita queda para estas brincadeiras. Gostavam de escrever tudo em nome deles. Paranóias!
A tarde decorreu bem animada, mas com algum toque de guerra de sexos. Tanto homens como mulheres queriam monopolizar as atenções de Alberto Caeiro. A coisa resolveu-se por si só perto das 21 horas, já que se aproximava a “première” de “Tróia”, com Brad Pitt. As senhoras tinham muito respeito por Alberto Caeiro, mas apesar de tudo o poeta não conseguia competir com o Pitt, ainda que em celulóide.
A pouco e pouco, os outros poetas foram também abandonando o convívio de Alberto Caeiro. Restaram na mesa Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Ângelo de Lima e Inocêncio Pinga-Amor, os últimos dois eram portugueses radicados há longo tempo em Manaus.
Comeram umas especialidades amazonenses e depois Augusto dos Anjos fez questão de instalar Caeiro no “Motel dos Inocentes”, Rua Frei José dos Inocentes, 369.
— Podia lhe levar para o “Cê qui sabe”, o “Le baron” ou o “Pousada del rio”. Mas você fica bem no “Motel dos Inocentes”. Sou amigo do dono. Ela terá champanha gelada para você, a troco de um poema inédito, quando estiver de saída, que ele vai colocar numa moldura. Já lhe prometi. Não vai me dizer que não.
As malas ficaram no motel. Depois, Cruz e Sousa despediu-se, apesar dos protestos de Augusto.
— Não seja assim, João. Vem prò forró por uma vez!
Cruz e Sousa não foi. A madrugada ficou por conta do quarteto constituído por Alberto Caeiro, Augusto dos Anjos, Ângelo de Lima e Inocêncio Pinga-Amor.
Começaram no “Badauê Clube de Campo” (mpb, pagode, samba, forró), em Tarumã; prosseguiram a arruada no “Boi Art’s - Arte do Boi Amozônico” (Shows de boi bumbá); estabilizaram no “Clave de sol”, em Adrianopólis.
Inocêncio Pinga-Amor não estava muito satisfeito. Em cada local onde paravam começava logo a dizer:
— Pronto, já se mostrou ao Caeiro. Vamos lá para o “Jet Set”.
Não que lhe interessasse o jet-set amazonense. O que lhe interessava eram os shows eróticos e de strip-tease do “Jet Set Night Club”.
— Bombas que cê é chato mesmo! — desabafou Augusto dos Anjos.
E lá foram todos para a rua 10 de Julho, caso contrário o Pinga-Amor não sossegava.
— O Caeiro também deve gostar de strip, não é, ó compatriota? — perguntou Inocêncio, com ar de tarado sexual.
Caeiro gostava de strip. A época de tosquia das ovelhas era algo que lhe dava particular prazer. E nem todos sabiam o toque de Midas de uma boa tosquia. Melhor do que Caeiro só um emplastro da Régua chamado Eduardo, por alcunha o “Mãos-de-Tesoura”. Que ciúmes, meu Deus!
No “Jet Set” a noite estava animada. As “minina” já tinham actuado durante bastante tempo, mas a noite era uma criança. O dia só nasceria três horas mais tarde. Tempo de sobra para desfrutar como deve ser o show erótico.
Ângelo de Lima encostou-se a um canto, a digerir a sua loucura. O ar estava impregnado com o acordeão de Richard Galliano, em brutais doses de spray musical que enchiam a atmosfera de “Sanfona”. Um “french touch” inconfundível. Puros 187 segundos de magia.
— Vai tomar alguma coisa, seu Ângelo? — perguntou uma empregada vestida como nos filmes de George Raft.
— Pode ser o mesmo.
— O mesmo de quem, seu Ângelo?
— O mesmo do gajo da música: um cálicezinho de Galiano.
Na mesa do lado, dois italianos sorriam perante a qualidade da música, as curvas das mulheres e o cheiro da vida a Chanel 5.
— Não me vou ralar mais, o que me resta hei-de gozá-lo até mais não poder, antes de sob as águas ir morrer. De tudo um pouco provo, e bem depressa. Percebes, Hugo?
Hugo sorriu. Percebia.
Ângelo meteu conversa.
— Isso tem uma certa poética. Mia soave... Ave?!... Almeia?!... Mariposa Azual... Transe!.. Que d’Alado Lidar, Canse... Dorta em Paz... Transpasse Ideia!... Hugo Pratt e Giorgio Baffo (famoso pelos seus sonetos eróticos e co-autor de um livro da Fenda com o banda-desenhista e viajante do mundo) pensaram que o homem era maluco. Mas não quiseram dizer nada. Não se deve contrariar. E depois, como contrariar o voo de uma mariposa azual? Ainda se fosse uma borboleta verde...
Augusto veio buscar Ângelo e pediu desculpa aos italianos.
— Nos desculpem. O nosso amigo tem alguns problemas, mas não é mau poeta. Incomodou-vos muito?
Hugo e Giorgio disseram que não. Augusto levou Ângelo pelo braço, a olhar para uma “minina” que descia a barra de ferro de cabeça para baixo, já em topless.
— Vamos nós, de braço dado, eu, que sou sonhador, e tu, ó meu irmão, que és marinheiro; tu que sentes a onda do mar a balouçar-te o corpo, a vida presa de um fio, e, quiçá, a alma, e eu que largo a imaginação no vasto mar do ideal, que a deixo embalar-se no ondear das quimeras, vamos nós, ó meu irmão, a devanear, e arrebatados nas nossas asas, brancas da pureza do nosso idealismo, pairar, pairar distante, à região do sonho. É uma meditação...
— Ângelo, se continuas com essas coisas deixamos de te trazer para a noite — ameaçou Inocêncio.
— Ó Caeiro, não está aborrecido connosco, pois não? Sabe, o Ângelo teve alguns problemas — esclareceu Pinga-Amor.
--- Não há problema nenhum. O Ângelo daria um excelente heterónimo. Infelizmente, a Pessoa S.A está a reduzir nos heterónimos e já começaram a deslocalizar pessoal. A senhora das limpezas, a Maria José, um heterónimo com tantos anos de casa, nem sequer foi poupada. Vejam lá que a puseram a vender pipocas nos cinemas.
Duas horas mais tarde, os poetas abandonaram o “Jet Set”, levando a tiracolo algumas “minina” de ar simpático, que estavam na rua a apreciar o luar, de vestidos curtos e alma invadida pela fadiga.
Augusto dos Anjos despediu-se à porta do “Motel dos Inocentes” e seguiu com uma loura para parte incerta. Inocêncio Pinga-Amor foi levar Ângelo de Lima a casa, pois nunca se sabia o que podia acontecer caso ele se pusesse a passear em peregrinações solitárias.
— Eu não estou doudo. Tenho sido manejado como um puro manequim. Por meio de venenos são-me senhores do cérebro.
Inocêncio Pinga-Amor encolheu os ombros de fastio e paciência e piscou o olho a Caeiro.
— Claro que não, Ângelo. Ninguém disse que estás doido.
— Não é doido. É doudo, como tintura de iodo.
— Sim, Ângelo.
— Já bebeste tintura de iodo, Pinga?
— Não, Ângelo. Ainda não.
— Devias beber. Fazia-te bem às cicatrizes no coração.
Jemper... trotivarius... devolveris... jejum... emoções... sempre... trotinetes... atum nos corações...
— Andaste a ouvir “Corações de Atum”, do Manuel João e do Galarza?
— Sei lá quem são. Jemper, trotivarius, devolveris...
— Pois, Ângelo. Agora vou-te pôr a casa.
— A casa não se põe. De noite, já se pôs. Nasce na alvorada.
Enquanto Pinga-Amor e Ângelo de Lima se embrenhavam na noite escura, Caeiro e uma “minina” de franjinha à Louise Brooks entraram no “Motel dos Inocentes”, onde ninguém era culpado de nada, mas todos os cremes eram premeditados. Desde o creme de amêndoas doces e lanolina para as massagens até ao tulicreme das tostas para o pequeno-almoço.
O quarto era agradável e Caeiro ficou de boxers, deitado em cima da cama, enquanto a “minina” foi para o jacuzzi e começou a chamar insistentemente por ele:
— Vem, amô! Cê ‘tá fazendo o quê? Vem! Ti faço um chamego...
— É só um momento. Tenho de dar um inédito para o dono do motel. O Augusto prometeu-lhe...
— Não demora, não? Sua gatinha ti ispera... viu?
— Vi.
O que Caeiro não estava a ver era uma única palavra na folha de papel em branco. Finalmente, saiu tudo de um jacto.
“Li hoje quase duas páginas/Do livro de um poeta místico,/E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,/E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem/E dizem que as pedras têm alma/E que os rios têm êxtases ao luar”.
Depois, serema e distraidamente, Caeiro entrou de boxers, peúgas e chapéu no jacuzzi, para grande choque da “minina” com franjinha à Louise Brooks, que se pôs a lavar meigamente as costas do poeta.
— Mi conta coisas sobre você.
— Não há muito a dizer. A 8 de Março de 1914 acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.
— Mi conta mais di cê.
— Abri com um título, “O guardador de rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase:aparecera em mim o meu mestre.
— Amô, não tenho di lhe disculpá nada. Eu tô aqui prà cê. Tem alguma fantasia sexual favorita?
— Tenho. Gostava de fazer amor com a “Dolly”.
— A Dolly Parton?
— Não. A minha ovelhinha.
— Sabe, amô, eu sou do Rio. Não há nada como um suruba carioca. Mas com ovelhinha nunca vi.
E enquanto Caeiro estava no “jacuzzi” com a “minina” carioca de franjinha à Louise Brooks, Pinga-Amor tentava levar Ângelo para casa.
— Anda, Ângelo. Levanta-te do chão...
— Nortex, Sulex, Estex, Oestex, a rosa não era dos ventos...
— Sim, eu também não sou daqui.
— Ninguém é de lado nenhum. Charimbum, charimbum, bum-bum. O meu boi morreu, que será de mim?
— Olha, eu sou é das Avenidas Novas, em Lisboa. E não me importava nada de lá estar agora.
— Manaus. Manaus, naus, caravelas, galeões.Galeões, um “bouquet” de galeões. Mas galeões não rima com testículos.
— Por que raio havia o meu pai de ter nascido em Manaus, num sótão com jibóias? E por que raio havia de me deixar um casarão em herança ao pé da Ópera? Mas eu não podia passar férias em Porto Seguro, como as pessoas normais, em vez de me ter radicado em Manaus?
As noites de Manaus não são más. São apenas habitadas por loucos, criaturas abençoadas por Deus.
— Uma vez disse a Deus: posso tratar-te por Manitu?
— Sim, Ângelo. E Deus que respondeu?
— Nada de confianças.
Von Grazen, 25/7/2004, 05h39m
Doping: Água do Luso/Smarties/um pinheirinho Hagen-Dasz.
CDs: “The eminent JJ Johnson”(duas passagens)/ “French Touch (Richard Galliano)/ “Piazolla forever” (Galliano).