Todos os fantasmas jogam "matrecos"
A vida na rua Coelho da Rocha era extremamente arreliadora.
Principalmente numa casa que se tornara moda de um momento para o outro. Não se sabe bem a razão. Parece que lá nasceu um escritor importante, que veio ao mundo no dia de Santo António, bebia bagaços e usava um bigode alugado ao sr. Adolfo, um alemão que gostava imenso de fazer viagens em grupo ao estrangeiro, apesar de ser muito temperamental.
O Álvaro e o Bernardo eram dois fantasmas honestos e trabalhadores, que não tinham achado piada nenhuma à confusão que se instalara na casa, a partir de meados dos anos 90 do século passado. Quando assinaram o contrato de arrendamento com um tal sr. Fausto (que exigia tinta permanente vermelha, manias!), ele prometeu-lhes sossego, assistência hospitalar a dois passinhos, bons restaurantes na zona, um jardim com cães simpáticos e metropolitano a 15 minutos a pé.
Ao invés, todos os dias a casa era invadida por manadas de crianças desavindas com o silêncio, de turbo ligado e a mexer em tudo. Ou por ratinhos de biblioteca, de óculos redondos, sempre a pesquisar de ar desconfiado, a perguntar coisas às funcionárias, a escarafunchar pormenores sobre uma arca qualquer. Álvaro e Bernardo tinham ouvido falar vagamente de um senhor chamado Steven Carlsberg e de uma fábula intitulada “Os profanadores da arca perdida”. Talvez fosse por causa disso que as pessoas por lá saltapocinhavam.
“Esta casa anda num desassossego permanente. Até dava para escrever um livro” – desabafou Bernardo para o seu amigo Álvaro, no regresso de Viana do Castelo, onde tinham estado a assombrar um grande festival pirotécnico, a convite da câmara municipal.
“É como dizes. Eu acho que dava em maluco, se não fosse arejar as ideias até à tabacaria da Anita” – respondeu Álvaro, que era um fantasma assim para o sonhador, mas tinha muita saída com as miúdas da escola primária, principalmente na faixa etária 6/7 anos, quando elas “ainda vão na cantiga” a troco de Barbies e Cindies. Depois ficam uma sabidonas. As finalistas da escola primária exigem chocolates de marca. Principalmente Cadbury. Mas o Ferrero Rocher também sai muito bem. Há mesmo uma senhora que é Product Manager da Rolls Royce (veste de amarelo e tem um motorista chamado Ambrósio) que costuma levar guloseimas às criancinhas mais novas do liceu Pedro Nunes, que fica perto da casa.
Álvaro e Bernardo eram muito requisitados para assombrações fora do distrito (“Soares & Campos, sustos, assombrações, aparições e outras curtições, MBA em Baskerville, doutoramento na mansão de S. Bento”, dizia no cartão), mas todos os dias vinham dormir a casa. Os fantasmas possuem essa simpática faculdade. Teletransportam-se disfarçados de nevoeiro. Há desvantagens, claro. Quando Álvaro e Bernardo foram de férias à Transilvânia, não se podia com o cheiro a alho, nos dias de bruma.
Do que eles gostavam mesmo era de uma boa partida de matraquilhos ao final do dia, depois de toda a gente ter abandonado a casa. Ficavam a beber uns copos de três na tasca das traseiras, a comer uns salgados, a fazer horas. Se fosse caso disso sintonizavam a TSF, enfiavam os auriculares na orelha e ficavam a saber as últimas das moinices do Jardel, das piadas do Pinto da Costa, das obras na Casa da Música, que deve estar pronta na estreia do “Porto, capital espanhola da agricultura”, lá para 2010. A construção da Casa da Música revelou-se uma verdadeira odisseia, mas vai ter muito espaço. Consta tremendamente que vai mesmo possuir um “Foyer de Beterrabas Tropicais”, arquitectado por Frank Génio.
Lá para a meia-noite/uma da madrugada, Álvaro e Bernardo entregavam-se ao mais puro deboche de punhos, mãos firmes naqueles varões de ferro com que manipulavam 11 homens completamente à mercê. Durante muito tempo, os jogadores tiveram nomes de escritores, mas depois mudou a equipa responsável pela casa (ex-Comissão dos Descobrimentos e das Casas com Bicos) e os novos directores resolveram mudar os bonecos de escritores para navegadores e guitarristas famosos.
Álvaro costumava jogar com Pedro Álvares Cabral (Náutico dos Recifes FC) na baliza; Diogo Cão (AD Perritos Calientes) e Fernão de Magalhães (Harém Globetrotters) no duo defensivo; intermediária com Cristobal Cólon (ex-Desportivo de Tordesilhas, actualmente velejador freelance), Gil Eanes (FC Bojador) e Vasco Serpa (Cascais); e no tridente ofensivo os cinco jogadores que se seguem: Henrique V (ex-Old Vic), Enrique Iglésias (Mundo do Escanção), Henrique Mendes (ex-Glória dos Mastros), Henry Ford (ex-Ferrari) e Henrique “Bóininhas” (ponta do Sagres).
Bernardo alinhava com: Eric Clapton; Steve Hackett e Mark Knoffler; António Chainho, Pedro Madaleno e Mário Delgado; Carlos Santana, Paul McCartney, Django Rheinhardt, Rui Veloso e BB King.
Geralmente, Bernardo vencia os encontros com relativa facilidade. Álvaro possuía a fineza de um “fair-play” apurado em Durban, mas dava-lhe para a depressão:
- Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
- Só mesmo em sonhos. Mete lá a moeda, que se faz tarde.
(Dois Euros)
Convém dizer que os novos responsáveis da casa acharam por bem reconverter a mesa de matraquilhos, que passou a ser considerada primordial fonte de receitas. Tal como as pipocas, os cachecóis Alberto Caeiro nos pastos, os “pins” Alexander Search à procura de si mesmo, os gorros radicais à “Mensagem Subliminar” e o restaurante. O prato do dia oscilava entre “Favas à Chuva Oblíqua”, o “Linguado à Meunier na sombra do Monte Abiegno” e a “Sandwich Club Ménage à Trois: alface, tomate e esoterismo”.
Aí uma vez por mês, quando Bernardo abusava do rapé absíntico (mais uma novidade da Direcção de Marketing da casa, venda proibida a menores de 14 anos), Álvaro lá se desforrava e ganhava dois ou três joguitos por noite. Bem à portuguesa, passava do oito para o oitenta:
- Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu. E a história não marcará, quem sabe?, nem um. Não haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
- Vá lá, deixa-te de merdas e mete a bola em jogo.
E Álvaro lá punha a bola em jogo, desguarnecendo a defesa. Bernardo, de ânimo em alta, na ânsia de remarcar um território de sucesso, não poupava nos adjectivos e remetia Álvaro para um limbo de fracasso com pré-aviso. Pronto, estava o caldo entornado:
- Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
- Estás a ver? Perdes os jogos porque te armas em Gabriel Alves. Isto são onze de cada lado e o resto é conversa. Andas a ler muito Fernando Pessoa.
Depois, claro, sabe-se como os jogos de matraquilhos entre o Álvaro e o Bernardo acabavam sempre. Os dois sentados nos degraus da escadaria da sala principal da casa, agarrados ao tabaco, dois dedos de conversa sobre a porcaria do mundo, a recessão no mercado de assombrações, a vizinha da frente que afinal era mesmo “call girl” de luxo, o Ferrari do Zezinho bate-chapas que tinha um motor todo faralhado que tinha vindo de um sheik do Kuwait e o fraquinho que o Álvaro tinha pela filha da lavadeira.
- Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz.
O que vale é que nessas alturas costumava chegar a Anita, o fantasminha mais querido de Campo de Ourique e arredores.
Anita trabalhava na tabacaria, mas queria ser pianista como a Maria João Pires, quando fosse grande. Ou então pintora como a Paula Rego. Ou então cantora como a Maria João. Ou então corredora de fundo como a Rosa Mota. Ou então política como a Maria de Lourdes Pintassilgo. Ou então fadista como a Amália.
Álvaro fazia-lhe uma festinha nos cabelos, revirava os lábios numa ameaça de sorriso terno, piscava o olho a Bernardo e dizia-lhe:
- Come chocolates, pequena. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolate com a mesma verdade com que comes!
- Porque é que não podes comer chocolates? – inquiria então Bernardo, muito espantado, porque os fantasmas podem comer tudo o que lhes apetece. Em princípio. Basta ter assinado o Acordo Geral de Exercício Profissional (AGEP).
- Não ligam bem com o bagaço.
Depois saíam os três, de mãos dadas, como uma família normal com dois pais e uma filha. Iam até ao jardim, porque a Anita precisava de espairecer. Aqueles percursos tabacaria-casa, casa-tabacaria, enjoavam qualquer miúda da idade dela.
Houve mesmo um dia em que Bernardo se encheu de coragem e perguntou a Álvaro:
- Olha lá, sempre chegaste a ir jantar a casa do Stau Monteiro ?
- Não, porquê ?
- Nem sabes do que te safaste.
- O que é que havia para o jantar ?
- Angústia.
- Estou um bocado farto desses jantares. O que há em mim é sobretudo cansaço. Não disto nem daquilo. Nem sequer de tudo ou de nada. Cansaço assim mesmo, ele mesmo. Cansaço.
- Vai-te lixar. Também já nasceste cansado.
- Uma vez um alentejano disse-me: “Dorme, que a vida é nada. Dorme, que tudo é vão”. E não é que o homem tinha razão?
- Vamos à inauguração do Alvalade XXI ?
- Não posso, já prometi ao Ricardo ir com ele à Luz.
- Mas o estádio não ficou todo destruído com a final do Europeu?
- Ficou, mas as claques foram obrigadas a reconstruí-lo.
- Então e os ucranianos que andavam nas obras?
- Olha, foram aproveitados noutras tretas que sabiam fazer: engenharia, medicina, assim uns biscates.
- Somos um grande país.
- Não tenhas dúvidas. Um dia destas, damos por nós, estamos no Quinto Império.
Von Grazen, 19/2/2003, 06h45m
Principalmente numa casa que se tornara moda de um momento para o outro. Não se sabe bem a razão. Parece que lá nasceu um escritor importante, que veio ao mundo no dia de Santo António, bebia bagaços e usava um bigode alugado ao sr. Adolfo, um alemão que gostava imenso de fazer viagens em grupo ao estrangeiro, apesar de ser muito temperamental.
O Álvaro e o Bernardo eram dois fantasmas honestos e trabalhadores, que não tinham achado piada nenhuma à confusão que se instalara na casa, a partir de meados dos anos 90 do século passado. Quando assinaram o contrato de arrendamento com um tal sr. Fausto (que exigia tinta permanente vermelha, manias!), ele prometeu-lhes sossego, assistência hospitalar a dois passinhos, bons restaurantes na zona, um jardim com cães simpáticos e metropolitano a 15 minutos a pé.
Ao invés, todos os dias a casa era invadida por manadas de crianças desavindas com o silêncio, de turbo ligado e a mexer em tudo. Ou por ratinhos de biblioteca, de óculos redondos, sempre a pesquisar de ar desconfiado, a perguntar coisas às funcionárias, a escarafunchar pormenores sobre uma arca qualquer. Álvaro e Bernardo tinham ouvido falar vagamente de um senhor chamado Steven Carlsberg e de uma fábula intitulada “Os profanadores da arca perdida”. Talvez fosse por causa disso que as pessoas por lá saltapocinhavam.
“Esta casa anda num desassossego permanente. Até dava para escrever um livro” – desabafou Bernardo para o seu amigo Álvaro, no regresso de Viana do Castelo, onde tinham estado a assombrar um grande festival pirotécnico, a convite da câmara municipal.
“É como dizes. Eu acho que dava em maluco, se não fosse arejar as ideias até à tabacaria da Anita” – respondeu Álvaro, que era um fantasma assim para o sonhador, mas tinha muita saída com as miúdas da escola primária, principalmente na faixa etária 6/7 anos, quando elas “ainda vão na cantiga” a troco de Barbies e Cindies. Depois ficam uma sabidonas. As finalistas da escola primária exigem chocolates de marca. Principalmente Cadbury. Mas o Ferrero Rocher também sai muito bem. Há mesmo uma senhora que é Product Manager da Rolls Royce (veste de amarelo e tem um motorista chamado Ambrósio) que costuma levar guloseimas às criancinhas mais novas do liceu Pedro Nunes, que fica perto da casa.
Álvaro e Bernardo eram muito requisitados para assombrações fora do distrito (“Soares & Campos, sustos, assombrações, aparições e outras curtições, MBA em Baskerville, doutoramento na mansão de S. Bento”, dizia no cartão), mas todos os dias vinham dormir a casa. Os fantasmas possuem essa simpática faculdade. Teletransportam-se disfarçados de nevoeiro. Há desvantagens, claro. Quando Álvaro e Bernardo foram de férias à Transilvânia, não se podia com o cheiro a alho, nos dias de bruma.
Do que eles gostavam mesmo era de uma boa partida de matraquilhos ao final do dia, depois de toda a gente ter abandonado a casa. Ficavam a beber uns copos de três na tasca das traseiras, a comer uns salgados, a fazer horas. Se fosse caso disso sintonizavam a TSF, enfiavam os auriculares na orelha e ficavam a saber as últimas das moinices do Jardel, das piadas do Pinto da Costa, das obras na Casa da Música, que deve estar pronta na estreia do “Porto, capital espanhola da agricultura”, lá para 2010. A construção da Casa da Música revelou-se uma verdadeira odisseia, mas vai ter muito espaço. Consta tremendamente que vai mesmo possuir um “Foyer de Beterrabas Tropicais”, arquitectado por Frank Génio.
Lá para a meia-noite/uma da madrugada, Álvaro e Bernardo entregavam-se ao mais puro deboche de punhos, mãos firmes naqueles varões de ferro com que manipulavam 11 homens completamente à mercê. Durante muito tempo, os jogadores tiveram nomes de escritores, mas depois mudou a equipa responsável pela casa (ex-Comissão dos Descobrimentos e das Casas com Bicos) e os novos directores resolveram mudar os bonecos de escritores para navegadores e guitarristas famosos.
Álvaro costumava jogar com Pedro Álvares Cabral (Náutico dos Recifes FC) na baliza; Diogo Cão (AD Perritos Calientes) e Fernão de Magalhães (Harém Globetrotters) no duo defensivo; intermediária com Cristobal Cólon (ex-Desportivo de Tordesilhas, actualmente velejador freelance), Gil Eanes (FC Bojador) e Vasco Serpa (Cascais); e no tridente ofensivo os cinco jogadores que se seguem: Henrique V (ex-Old Vic), Enrique Iglésias (Mundo do Escanção), Henrique Mendes (ex-Glória dos Mastros), Henry Ford (ex-Ferrari) e Henrique “Bóininhas” (ponta do Sagres).
Bernardo alinhava com: Eric Clapton; Steve Hackett e Mark Knoffler; António Chainho, Pedro Madaleno e Mário Delgado; Carlos Santana, Paul McCartney, Django Rheinhardt, Rui Veloso e BB King.
Geralmente, Bernardo vencia os encontros com relativa facilidade. Álvaro possuía a fineza de um “fair-play” apurado em Durban, mas dava-lhe para a depressão:
- Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
- Só mesmo em sonhos. Mete lá a moeda, que se faz tarde.
(Dois Euros)
Convém dizer que os novos responsáveis da casa acharam por bem reconverter a mesa de matraquilhos, que passou a ser considerada primordial fonte de receitas. Tal como as pipocas, os cachecóis Alberto Caeiro nos pastos, os “pins” Alexander Search à procura de si mesmo, os gorros radicais à “Mensagem Subliminar” e o restaurante. O prato do dia oscilava entre “Favas à Chuva Oblíqua”, o “Linguado à Meunier na sombra do Monte Abiegno” e a “Sandwich Club Ménage à Trois: alface, tomate e esoterismo”.
Aí uma vez por mês, quando Bernardo abusava do rapé absíntico (mais uma novidade da Direcção de Marketing da casa, venda proibida a menores de 14 anos), Álvaro lá se desforrava e ganhava dois ou três joguitos por noite. Bem à portuguesa, passava do oito para o oitenta:
- Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu. E a história não marcará, quem sabe?, nem um. Não haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
- Vá lá, deixa-te de merdas e mete a bola em jogo.
E Álvaro lá punha a bola em jogo, desguarnecendo a defesa. Bernardo, de ânimo em alta, na ânsia de remarcar um território de sucesso, não poupava nos adjectivos e remetia Álvaro para um limbo de fracasso com pré-aviso. Pronto, estava o caldo entornado:
- Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
- Estás a ver? Perdes os jogos porque te armas em Gabriel Alves. Isto são onze de cada lado e o resto é conversa. Andas a ler muito Fernando Pessoa.
Depois, claro, sabe-se como os jogos de matraquilhos entre o Álvaro e o Bernardo acabavam sempre. Os dois sentados nos degraus da escadaria da sala principal da casa, agarrados ao tabaco, dois dedos de conversa sobre a porcaria do mundo, a recessão no mercado de assombrações, a vizinha da frente que afinal era mesmo “call girl” de luxo, o Ferrari do Zezinho bate-chapas que tinha um motor todo faralhado que tinha vindo de um sheik do Kuwait e o fraquinho que o Álvaro tinha pela filha da lavadeira.
- Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz.
O que vale é que nessas alturas costumava chegar a Anita, o fantasminha mais querido de Campo de Ourique e arredores.
Anita trabalhava na tabacaria, mas queria ser pianista como a Maria João Pires, quando fosse grande. Ou então pintora como a Paula Rego. Ou então cantora como a Maria João. Ou então corredora de fundo como a Rosa Mota. Ou então política como a Maria de Lourdes Pintassilgo. Ou então fadista como a Amália.
Álvaro fazia-lhe uma festinha nos cabelos, revirava os lábios numa ameaça de sorriso terno, piscava o olho a Bernardo e dizia-lhe:
- Come chocolates, pequena. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolate com a mesma verdade com que comes!
- Porque é que não podes comer chocolates? – inquiria então Bernardo, muito espantado, porque os fantasmas podem comer tudo o que lhes apetece. Em princípio. Basta ter assinado o Acordo Geral de Exercício Profissional (AGEP).
- Não ligam bem com o bagaço.
Depois saíam os três, de mãos dadas, como uma família normal com dois pais e uma filha. Iam até ao jardim, porque a Anita precisava de espairecer. Aqueles percursos tabacaria-casa, casa-tabacaria, enjoavam qualquer miúda da idade dela.
Houve mesmo um dia em que Bernardo se encheu de coragem e perguntou a Álvaro:
- Olha lá, sempre chegaste a ir jantar a casa do Stau Monteiro ?
- Não, porquê ?
- Nem sabes do que te safaste.
- O que é que havia para o jantar ?
- Angústia.
- Estou um bocado farto desses jantares. O que há em mim é sobretudo cansaço. Não disto nem daquilo. Nem sequer de tudo ou de nada. Cansaço assim mesmo, ele mesmo. Cansaço.
- Vai-te lixar. Também já nasceste cansado.
- Uma vez um alentejano disse-me: “Dorme, que a vida é nada. Dorme, que tudo é vão”. E não é que o homem tinha razão?
- Vamos à inauguração do Alvalade XXI ?
- Não posso, já prometi ao Ricardo ir com ele à Luz.
- Mas o estádio não ficou todo destruído com a final do Europeu?
- Ficou, mas as claques foram obrigadas a reconstruí-lo.
- Então e os ucranianos que andavam nas obras?
- Olha, foram aproveitados noutras tretas que sabiam fazer: engenharia, medicina, assim uns biscates.
- Somos um grande país.
- Não tenhas dúvidas. Um dia destas, damos por nós, estamos no Quinto Império.
Von Grazen, 19/2/2003, 06h45m
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