15 desatinónimos para Fernando Pessoa

domingo, fevereiro 25, 2007

O Parque dos Poetas

No dia da inauguração do Parque dos Poetas, chovia que Deus a dava. Um pequeno engano. Sendo a Irlanda e Portugal dois países de poetas, o Centro de Coordenação tinha distribuído tempo de Portugal (25 graus, céu limpo, brisa acariciadora) para um festival de poesia e música em Cork; e tempo mais do que justificadamente irlandês (9 graus, grossas bátegas de água, frequentes e chatas, céu farrusco e mal enfronhado) para Portugal. Oeiras, mais concretamente.
Pode-se dizer à vontade que a chuva não molha poetas, mas a verdade é que prejudicou de forma insofismável o brilho da inauguração. Em primeiro lugar, molhou bastante o fio da tesoura que foi dada ao presidente da autarquia, cujos vãos esforços para cortar uma fita da melhor seda apenas criaram um clima de “spleen” muito baudelaireano.
Finalmente, o senhor Geraldes, jardineiro diplomado com muita clorofila decepada, chegou montado no seu corcel John Deer, apeou-se, tratou algumas pessoas sem a consideração devida (era um tanto dado ao bagaço, na linha de António Nogueira) e desbastou de forma insolene a seda que deveria ter sido desflorada com cuidados de colibri.
— Prontos!
E saiu de cena, montado no John Deer de motor roufenho e pintura a precisar de um toque feminino.
O presidente da autarquia declarou aberto o Parque dos Poetas.
Marés de palmas planaram por entre a chuva. Sentiu-se cultura na atmosfera. O ar ficou mais leve. Magia pura. Os sorrisos brilharam para além das dimensões regulamentares. Mas era dia de festa. Quem ia controlar essas coisas mesquinhas ?
Caiu a noite.Foi-se a chuva. Vieram as estrelas.
Os melros, vestidos de Batman de bico amarelo, aventuraram-se ao novo design do espaço.
Bem ao centro do Parque, ouviu-se um fósforo a riscar bronze. Um pequeno clarão de um laranja belo acendeu o luar. Depois, uma minúscula nuvem de fumo nadou até ao céu.
— Sabe, Mário, o amigo não teve sorte. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quis, nem a esperança os buscou, nem a glória os acolheu. Ou morreram jovens, ou a si mesmos sobreviveram, íncolas da glória ou da indiferença. O Mário morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.
— Veja, Nando, no meio de tudo, colocaram-nos lado a lado no Parque. Nem tudo é azar. Podemos continuar as nossas conversas inacabadas.
— Certo, Mário. Mas era o mínimo que lhe podiam fazer. Por mim tanto fazia, desde que me lavassem a estátua com bagaço todos os dias. Mas parece que isso está garantido. Tenho as minhas fontes. No entanto, permita-lhe que lhe diga, o Mário não se dá com toda a gente. A sua vida poderia ter sido outra se se tem aproximado do Marcel. Assim, parece que Paris foi um tempo perdido.
— Compreendo o seu cuidado, mas agora é tarde, Nando. Não posso ir em busca do tempo perdido, independentemente do seu volume.
Luiz Vaz de Camões começou a dizer adeus, lá bem ao longe, da Alameda. Fernando António correspondeu ao gesto, por educação, embora sentisse um certo ciúme da figura. Mário, mais distraído, fez um sinal com a cabeça.
— Quem era, amigo Nando?
— Ninguém de especial. Um complicado das rimas. Cunhas, sabe como é. Qualquer gentinha com um mínimo de jeito para a palavra pode vir cá dar. Basta conhecer as pessoas certas. Política.
— Sei como é, Nando. Escrevi-lhe sobre isso de Paris.
— Tenho as suas cartas todas guardadas. São 202. Têm uma fitinha de organdi azul-bebé à volta. Não tinha mais nada à mão de semear.
— Escrevi assim tantas?
— Ó Mário, você precisava de desabafar com o seu amigo...
— Só você me compreendeu, Nando...
— Mário, aconteceu-lhe o mesmo que a muito boa gente. Enganou-se no atalho da existência. O importante é estarmos aqui os dois. O fumo não está a ir para cima de si, pois não? Ainda não tive tempo de estudar os ventos aqui do Parque...
— Por quem é, meu amigo. Fume à vontade. Ajuda a passar a noite. A primeira é sempre a mais difícil.
Luiz Vaz de Camões diz outra vez adeus, agora de forma mais insistente. Fernando António não conseguiu disfarçar a irritação.
— Está incomodado, Nando ?
— É o sujeitinho quinhentista outra vez, Mário. Não digo que seja má pessoa, mas é um possidónio. Não estava habituado a máquinas fotográficas, artigos de jornal, internet.
— Ah!...
— Pois, era um playboy de jet-set. Viagens, natação, miúdas, às vezes escrevia umas coisas. Mas muito encostado ao subsídio.
Ouviu-se uma ambulância. Um reflexo de pirilampo azul banhou as estátuas. Duas larvas desalojadas pela inauguração arrastaram-se penosamente até ao próximo morro de observação. Quando o dia nasceu, foi sem dor.
Por volta das nove da manhã, o sorriso de Fernando António tinha tudo de radioso. Mário acordou de umas poucas horas de sono e reparou na euforia do amigo.
— Então, Nando, acordou bem disposto, pelo que vejo?...
— Nem dormi, meu caro Mário. O Caeiro telefonou-me do campo e passou o tempo todo a discutir a temática da Dolly. Uma melga. Bom rapaz, mas muito chaga e rural, sabe como é... falta-lhe patine.
Olhe, olhe, está a ver o dos folhos no pescoço ?
— O de ontem à noite ?
— Sim, sim, veja como o sol lhe bate na tromba! Ele está mortinho por tirar os folhos, mas a vaidosice não o deixa... já ganhei o dia, já ganhei o dia...
— Ó Nando, você é que sabe, mas não está a desenvolver uns certos ciúmes com esse tal dos folhos ?
— Por amor de Deus, Mário. Só não lhe levo a mal porque sou muito seu amigo e sei que está de boa fé. O dos folhos só escreve manuais para a escola. Lê-se um canto aqui, outro canto ali. Os meus poemas lêem-se de ponta a ponta. O dos folhos a malta esquece, só sabe os primeiros versos. Os meus poemas toda a gente cita. É a diferença, amigo Mário...
— Bem, a manhã hoje está um pouco mais de azul...
— Não se entusiasme. Estamos em Oeiras. Sabe como é, o microclima do Jamor. Dá direito a tudo.
— Ó Nando, não se pode pedir um clima perfeito. Um Parque de Poetas dá trabalho a organizar.
— Pois dá, mas o jardineiro veio aí ontem pedir tabaco — o Mário estava a dormir — e contou-me umas boas.
— Por exemplo, Nando...
— Olhe, os maiorais da poesia foram escolhidos por consenso, mas depois havia uma quota por partidos e outra por sorteio, tipo tômbola.
— Não posso crer.
— Estou-lhe a vender o peixe ao mesmo preço que mo vendeu o jardineiro. É um homem do povo, simples, mas representa a essência do Quinto Império. Olhe, para já, não se deixa enganar no bagaço. Isso para mim é fundamental. Quem não se sente não é filho de boa gente.
Chegou a hora do almoço. No dia da inauguração tinham servido às estátutuas toda a sorte de benfeitorias. Mas o tempo era de crise. Até a conjuntura económico-financeira se alterar, todas as estátuas deviam levar em linha de conta a sua condição de cidadãos-poetas.
Por isso, nos primeiros três meses, a alimentação das estátuas-poetas era um tanto frugal. Deveria ser levada em consideração “a missão de representar insitucionalmente o país, o concelho e a cultura de um povo, já para não falar nos interesses da Comunidade Europeia, essa grande Disneylândia da esperança que, todos juntos, estamos em vias de construir”.
Ao pequeno almoço, uma peça de fruta e um pacote de Santal Alperce (protocolo de sponsorização). Para quem estivesse de dieta, Santal Pera. Ao almoço, duas sopas à escolha: canja de galinha com sonetos de letras (dieta) ou caldo verde com ensaios de Eduardo Lourenço; prato de carne: bolonhesa de hidratos de carbono (dieta) ou Pizza Multo Carne (protocolo de sponsorização com Pasta Café); prato de peixe: pescada cozida (dieta) ou conservas de atum Bom Petisco, com batata cozida, ovo e feijão frade (protocolo de sponsorização com Hipermercado Continente); doce: pudim do Abade de Priscos (só poetas laureados com mais do que três prémios do escalão três) ou leite-creme da avozinha; fruta: bananas e cerejas (para os poetas que já tenham utilizado palavras como cerejas).
Fernando António e Mário deglutiram rapidamente a refeição, porque preferiam os prazeres do espírito e do debate e ainda mal tinham começado a saciar-se com a espiritualidade mútua.
— Ó Nando, conhece Sadiouka Ndaw?
— Ó Mário, confesso a minha ignorância. Quem é?
— É um poeta senegalês muito interessante, dos arredores de Dakar. Vive em Rufisque.
— Sabe, Mário, eu saía pouco e não era um poeta todo-o-terreno.
— Pois, mas este cavalheiro vale a pena. Tem como balizas poéticas o poema “La mort du loup”, de Musset, e “Afrique”, de David Diop.
— Meu caro Mário, a ignorância não é vergonha nenhuma. Vergonha é fingir conhecimento onde ele não existe. De resto, demonstra também uma enorme falta de sentido prático. Mais tarde ou mais cedo, qualquer poeta é apanhado na sua própria armadilha. E depois, balizas poéticas lembram-me sempre futebol.
— Nando, o Sadiouka é presidente de um clube da II Liga do Senegal. E também gosta de natação e pesca. Não conhece aquele poema assim: “Femme de la nuit, femme du jour, épouse immortelle de mes rêves, ange auguste aux beaux contours...”.
— Não, mas lembra-me um bocado o brasileiro Augusto dos Anjos...
— Isso depois passa.
— Mário, passava era com umas boas férias. Este Parque está a parecer-me um tanto idiota. Se não fosse a presença do meu querido amigo.
— Não desespere, Nando. Talvez se consiga um intercâmbio de Parques de Poetas, tipo Erasmus.
Os Deuses acolhem as preces. Exactamente no primeiro aniversário do Parque dos Poetas, Fernando António Nogueira Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Luiz Vaz de Camões estavam bem sentadinhos à mesa de uma esplanada, a beber uma Carlsberg estupidamente gelada. Acompanhados de um puto com estilo: Alexandre O’Neill.
Cenário: Ilhas Gregas. É preciso é saber. Ionian Star Hotel. Construído em 1983 e completamente renovado em 2001. Com vista para o porto e mesmo ao lado do Parque dos Poetas.
— Ó Alexandre, o menino conhece algum poeta grego ? — perguntou Luiz Vaz.
— Nem estou interessado — respondeu O’Neill, muito calmamente, verbalizando a sua grande dúvida existencial do momento:
— Será que estes gajos têm tremoços? Alguém sabe dizer tremoços em grego?
E pôs-se a gritar para o empregado: “Yellow smarties for beer, yellow smarties for beer”. Em vão.
Pois, a vida não custa. É preciso é saber. Casa de banho privativa, ar condicionado, TV por satélite em todos os quartos. E ainda dizem que as estátuas dos poetas se tratam mal.
— Ó Nando, diga lá agora como embirrou com o Luiz naqueles primeiros dias em Oeiras...
— Oh! Isso são águas passadas, Mário...
— Diga, Nando. Foi tão divertido. O Luiz não se aborrece.
— Pode dizer, Fernando António — tranquilizou Luiz Vaz.
— Olha, Luiz Vaz, foi uma embirração. Ainda não tinha lido a sua obra com olhos de ler. Quando descobri a Lírica perdi as manias todas.
— Fico-lhe muito grato — disse Luiz Vaz.
— Não tem nada que agradecer. Sabe que o Villaret tanto declama um como outro...
— Não sei se deva confessar isto agora aos meus amigos. Mas eu gostava mesmo era de ter os “Lusíadas” adaptados aos tempos actuais. Uma coisa multimédia com os Fura del Baus. Com muito sexo na plateia. Ou então uma comédia tipo Feydeau, encenada pelo Fernando Gomes. Ou um espectáculo daqueles de um ano em cena, no Politeama, com o La Féria a tratar de tudo. Uma coisa de que ninguém se esquecesse. Os miúdos hoje só querem playstations...
— Não diga isso, é impossível matar a poesia. Estou tranquilo — esclareceu Alexandre, enquanto tentava espreitar para dentro do bikini de uma helénica que ia a passar.
E os dias correram sempre harmónicos na ilha grega de Lefkada, onde se tinha celebrado o protocolo de amizade Portugal-Grécia. Que abrangia, entre outras coisas, um intercâmbio sazonal de estátuas-poetas.
Uma ilha tão deslumbrante e tão esquisita que tinha gerado um poeta chamado Lefkadios Hern, nascido em 1850, filho de pai irlandês e mãe grega. Depois, deu-lhe uma veneta e acabou os seus dias no Japão, em Sinzuku. Já se chamava Yakumo Koizumi.
No Parque dos Poetas, o busto de mármore de Lefkadios (ou Yakumo?) dava sempre a salva ao Quarteto Maravilha, no passeio após o almoço. E Alexandre nunca se esquecia de levar uma Guiness e uma pequena chávena com saké. Para que o poeta não tivesse de sofrer as torturas da dúvida.
Claro que até no Paraíso há sempre um pormenor que pode correr mal, com os excessos. Mário exagerava na bebida e por vezes punha-se a vomitar nas valetas e a dizer coisas parvas para Fernando António:
— Doido! Doido! Doido! Tenha muita pena de mim...
Bebedeiras, o que se há-de fazer?
Nos churrascos era a mesma coisa. Punha o avental e não deixava ninguém virar as febras:
— Um pouco mais de sol e fôra brasa. Um pouco mais de azul e fôra além.
Mas a amizade é isso mesmo. Saber perdoar aqueles coisas que nem mereciam ser perdoadas. É preciso pensar que a essa hora mais de 50 poetas portugueses de boa cepa eram vítimas do Comandante Pombinho, terrível major-aviador da 3ª Esquadrilha do Terreiro do Paço:
— Atenção a todos os bombardeiros. Operação “Lagostim” começa dentro de momentos. Acertar as anilhas. Nome de código da estátua a atingir hoje: “Alberto Hélice”.
A vida tem destas coisas. Enquanto uns fazem vida de lordes nas ilhas gregas, outros têm todos os dias as cabeças a escorrer porcaria. Um cenário habitual, há longos anos, na poesia portuguesa.
E ninguém vê isto?
Claro que sim. Todos os dias. Os milhares de visitantes do Parque dos Poetas. Papás com as criancinhas pela mão, namorados em busca do alívio das tensões sexuais, amigos que se cansaram de estar em casa a ver televisão (Poetry Shows), visionários com mensagens para transmitir ao povo. Enfim, toda a gente.
Não é para isso que serve um Parque dos Poetas?
Por esses tempos, na Grécia, Alexandre O’Neill desafiava a Vénus de Milo:
— Ó mana, não quer ir lá ao hotel comer uns pastéis?
Quem nunca frequentou um Parque dos Poetas que atire a primeira pedra.

Luís Graça, 11/6/2003, 04h58m

domingo, fevereiro 18, 2007

'Tá tudo na maior?

— ‘Tá tudo na maior?
— Iééééééééé!
— Não ‘tou a ouvir nada!
— IÉÉÉÉÉÉÉ!
— Assim, sim. Boa noite, Lisboa.

Rock in Rio em Lisboa. Mais uma edição a caminho do sucesso. O promotor Fernando Pessoa acertara na “mouche” outra vez. Para além de coordenador do festival, era ainda o ‘manager’ da banda do momento, os “Village Persons”: Bernie Soares, Álvaro Fields, Ricky Reis e Al Caeiro.

— E agora, a banda que todos esperavam, no palco principal da Bela Vista, para encerrar da melhor forma a edição deste ano: os “Village Persons”!

Mal Fernando Pessoa acabou de anunciar a banda, um enorme “bruá” subiu aos céus, fazendo-se ouvir até à Alameda Afonso Henriques. Cerca de 120 mil pessoas (a antiga lotação do Estádio da Luz) em delírio ovacionaram a banda que o país inteiro consagrou.
Os holofotes varreram o palco e incidiram sobre o quarteto de luso-americanos, que optou por entrar em cena ao som de um dos grandes ‘hits’ do grupo: “In the poetry”.
“Na poesia, é onde gostas de criar, na poesia, versos feitos para amar... we want you... we want you... we want you as a new recruit... larilolé... larilas... olé!... e quem não salta não é poeta... e quem não salta... não é poeta!”.
Apesar da veterania da banda, o facto é que o concerto de encerramento do Rock in Rio funcionava como uma gigantesca ponte de união entre três gerações. Ao seu lado, a catarse musical de Paul McCartney ou Peter Gabriel não passara de uma brincadeira de crianças.
Al Caeiro, com as suas raízes campestres, estava vestido de chefe índio, como habitualmente, em homenagem à Associação de Amizade Cernancelhe-Connecticut; Bernie Soares, para não variar, dava nas vistas com os seus cabedais negros à ‘motard’; Ricky Reis era o marujo de serviço, com um estetoscópio ao pescoço; por fim, Álvaro Fields marcava presença como o polícia da estrada.

— Olá, Lisboa! É uma alegria enorme estar aqui no Rock in Rio — gritou Bernie Soares, o líder da banda, no final do primeiro tema de um concerto que tinha a duração prevista de três horas.
— E agora, com muito amor e carinho e um abraço especial para todos os emigrantes que estão a passar férias em Lisboa e andam lá fora a lutar pela vida... vamos tocar “A meio do outeiro”, uma composição do Al Caeiro.
Num fabuloso espectáculo de luz, cor e alegria, “A meio do outeiro” arrebatou a multidão, inteiramente conquistada pelas brilhantes coreografias da banda, que misturavam sabiamente o “disco”, o “soul”, o “funk” e o folclore português, com um ligeiro toque de madressilva e Madredeus.
“Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro/Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./ Ele é o humano que é natural/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro”.
De rostos colados, todos à volta do microfone de Bernie Soares (o “lead singer”), Al Caeiro, Ricky Reis e Álvaro Fields conferiam um enorme “feeling” ao refrão: “Menino Jesus, Menino Jesus, Menino Jesuuuus verdadeeeeiroooo”.
Mais atrás, uma loira, uma ruiva, uma morena e uma chavala de cabeleira afro tratavam dos coros: “A meio do outeiro, a meio do outeiro, a meio do outeiro... só tu... só tu... Menino Jesus... verdadeiro... verdadeiro... a meio do outeiro”.
Centenas de T-shirts brancas com letras negras eram agitadas pelos fãs: “A meio do outeiro, Albert Caeiro”. Ou então T-shirts negras com letras brancas: “Ricky Reis: Doctor, Doctor, give me the news, bad case of loving you”.
As miúdas do coro estavam frenéticas no seu metro e 80, mais as botas negras de tacões altos, para combinar com os vestidos prateados brilhantes, colados ao corpo, com um decote sugestivo. Uma perfeita simetria de carnes, odores e movimentos.
No meio da multidão, estudantes universitários carregavam barris de cerveja às costas, com uma bandeirinha a sobressair do conjunto, estilo carrinho de choque da defunta Feira Popular. Os fãs, ávidos, consumiam cerveja às toneladas, mantendo, apesar disso, um comportamento irrepreeensível.

A noite estrelada convidava à fraternidade e à troca de intimidades. Os olhares dos fãs cruzavam-se insistentemente pelo meio dos decibéis, à espera de um heliporto do afecto onde acostar. À espera de um colo maternal feito doca.
— Obrigado, Lisboa! We love you! Vocês são uma audiência do mais great que há! Sinceramente trully! Palavra de honour! É uma grande honra para nós estar a actuar aqui. Viemos directos dos States só p’ra vocês!
Palmas. Aplausos. Histerismos vários. Aquelas coisas habituais nos concertos, não é? É preciso dar um certo desconto.
— Mas não foi sacrifice nenhum. Foi um verdadeiro pleasure! A gente voou de Newark, disse adeus à estátua da Liberty e pensou que vinha dar alegria aos nossos queridos portugueses. Nós somos 45 por cento americanos, 45 portugueses e 10 por cento não respondem/não sabem. Mas acima de tudo a nossa ária é a língua portuguesa!
Mais um tema. Mais uma voltinha. Mais uma viagem. É entrar, meus senhores, é entrar!
— Obrigado, Lisboa! Aqui a cantar para vocês, neste maravilhoso palco, as lágrimas escorrem-me pelo rosto. E eu gosto de ter as lágrimas a escorrer pelo rosto. Obrigado, Lisboa! Mas infelizmente, pelo mundo fora, há muitas crianças a chorar de fome. Crianças que não choram de alegria, como eu, neste momento, aqui convosco. Por isso gostava de vos dizer duas ou três coisas nesta noite de amor...
A multidão não deixou Bernie Soares prosseguir. Bastou uma fã de mamas a abanar ao vento proferir a palavra mágica: “Bernie! Bernie! Bernie!”. Logo os milhares de fãs se puseram a repetir o alakazam do fanatismo musical: “Bernie! Bernie!Bernie!”.
Bernie queria prosseguir. Bernie queria andar para a frente e não conseguia. Faltava-lhe espaço afectivo. Faltava-lhe uma aberta entre os fãs. Bernie levantou os braços e tentou continuar:
— Muito obrigado! We love you! Thank you, Lisbon. Portugal é grande!
A multidão apanhou o lamiré e mudou de palavra de ordem:
— Portugal! Portugal! Portugal!

Milhares de bandeiras que tinham sobrado do Euro-2004 emanciparam-se das mãos dos fãs e começaram a bailar na atmosfera, autênticos bailarinos russos em pontas.
— Obrigado, Portugal! Obrigado, Lisboa! Mas deixem-me dizer...
A multidão não deixava. Se não fosse o controlo apertado da segurança, quase se poderia dizer que uma considerável parte da multidão estava “pedrada”. Mas faz algum sentido falar disto num festival musical?
Finalmente, o senhor Soares lá conseguiu passar a sua mensagem:
— Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez. A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Está há 40 anos em Lisboa e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro!

Dois fãs que seguiam os “Village Persons” para todo o lado entraram em diálogo:
— O gajo já fez este discurso em Copenhaga, há dois meses!
— Pois foi. Trocou só as cidades e a profissão do velho. Em Copenhaga era um carpinteiro.
— Mas onde é que o gajo vai buscar estas coisas?
— Então não sabes?
— Não...
— Livro do Desassossego, página 183, Assírio e Alvim.
— Ah! pois é...

Bernie Soares anunciou a canção seguinte do alinhamento que os “Village Persons” cumpriam com a devoção de uma seita secreta:
— E agora um tema de Álvaro Fields, composto já há bastante tempo, quando éramos jovens. Mas ainda nos sentimos bastante jovens. Uma composição de Álvaro Fields: “ Freddie”.
E o grupo lá atacou a balada:
“Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te/Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim/Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes/viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta/Mary, eu sou infeliz/Freddie, eu sou infeliz”.

Acenderam-se isqueiros, iniciaram-se em ofuscantes cintilações nocturnas aqueles coisinhos verde-alface e aqueles coisinhos rosa que são vendidos a pataco. Os braços da multidão ao jeito das vozes, de um lado para o outro, de um outro para o lado, como uma espiga ao vento nos verdes trigais em flor.
E depois Bernie Soares cedeu um bocadichinho de protagonismo ao Ricky Reis e ele veio anunciar a presença-surpresa de um convidado muito especial:
— E agora temos uma surpresa para vocês. É um homem de um sucesso enorme, respeitado em todo o mundo. Estava muito sossegadinho na tenda VIP, lá bem ao fundo, naquelas colinas distantes, a tentar passar despercebido. Mas nós fomos lá buscá-lo. Perdemos um bom bocado a convencê-lo, mas é com grande prazer que posso anunciar que o convidámos a vir cantar um tema do Álvaro Fields. Meus amigos e minhas amigas, é um sumo privilégio poder anunciar a presença neste estaminé de um grande senhor do mundo da canção, de um grande senhor da canção e de um grande senhor do mundo: Roberto Leal!

Roberto Leal entrou em cena no seu trote habitual de Alter, imaculadamente branco, com uma discreta publicidade institucional à Olá nas costas do casaco.

— Boa-noite, Lisboa! Olá, brasileiros deste país! Hello, everybody! My name is Leal, Roberto Leal. Shaken, not coiso-e-tal.

E o raio do homem agarrou logo a audiência. Passou o microfone por cima da cabeça, passou o microfone por baixo das pernas, passou o microfone por trás das costas. Pouca gente sabe, mas Roberto Leal fez um estágio no Chapiteau, na Costa do Castelo, quando era jovem.

— Lisboa, estás preparada? Então, aqui vai. De Álvaro Fields, “Meu coração postigo”.
“Meu coração clube, sala, plateia, capacho, guichet, portaló/Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial/Meu coração postigo/Meu coração encomenda/Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega/Meu coração a margem, o limite, a súmula, o índice/Eh-lá,eh-lá,eh-lá, bazar o meu coração”.

Mais um delírio. Mais outro grande momento para a história da música. Até as ameaças de nuvem se balançaram no swing compassado da voz Leal. E Bernie Soares voltou para o volante do microfone.

— Há muitos intelectuais que não gostam do Roberto Leal. E dão a sua opinião. Mas uma opinião é uma grosseria, mesmo quando não é sincera. Toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.
Ah! é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fidalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má literatura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, porém perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a fronteira e perdeu a nacionalidade.

As horas passaram. As horas voaram.Tema após tema. Delírio após delírio. Lisboa a suar de prazer. Lisboa voraz de música. Lisboa a destilar ânsias de melodia. Os “Village Persons” a sair do palco. Zeus a assobiar pelo meio das barbas, a pedir bis, lá das galinheiras. Neptuno a bater com os pés lá do fundo dos oceanos. Então e os encores? Encore, rien? Atão eles na voltam ao palco?
Voltou só um a anunciar a surpresa. Ricky Reis:

— Thank you, Lisboa. Especialmente para vocês, já em pleno prolongamento, a última surpresa. Para as meninas já tivemos um louro. E agora anunciamos um chocolatinho, bem moreno, para os meninos. É uma jovem promessa de Newark, toca piano e fala inglês: Alícia Chaves.

Por amor de Deus! Ai o nosso coração. Alícia Chaves cantou e encantou em “If I ain’t got you”, dedicado ao líder da banda e seu conselheiro musical, Bernie Soares.

— Esta miúda vai longe... e desnivela-se em conglomerados de sombra, recortados de um lado a branco, com diferenças azuladas de madrepérola fria (página 385)

Final do concerto. Toda a malta a penantes para casa. Músicos e entourage para os bastidores. E o Bernie com tiques de estrela do rock, a lançar olhares libidinosos às miúdas que lhe apareciam pela frente.
Mesa farta, tipo casamento. Bernie mandou-se às entradas: melão de Almeirim com morcela. E verde à pressão.
— Conheço, translata, a sensação de ter comido de mais. Conheço-a com a sensação, não com o estômago. Há dias em que em mim se comeu de mais. Estou pesado de corpo e lorpa de gestos; tenho vontade de não me tirar dali de maneira nenhuma.
E vá de sentar a Alícia ao colo, sem respeito nenhum:
— Ai não te chamas mesmo Alícia Chaves? Chaves é nome artístico, porque a tua família é de Chaves e emigrou para os States... tem piada, só agora é que sei disto... e já te ando a dar conselhos há uns tempos...
As tuas mãos são rolas presas. Os teus lábios são rolas mudas (que aos meus olhos vêm arrulhar). Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente. Tu és toda alada (página 292).

Bernie sentia um prazer imenso em ter Alícia ao seu colo. Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.

E a madrugada correu suave. Croquetes, paio, lombo enguitado (petisco alentejano, não conhecem?), batatas fritas de pacote, lagosta à Terminator, aletria, mousse de chocolate caseira, lasagna clássica e vegetariana. Coisas da música.
Depois, Fernando Pessoa entrou no convívio, a esfregar as mãos. O festival tinha corrido bem.
— Amanhã, já sabem. Todos prontinhos às 14 horas, temos um gig em Loures, no Pavilhão Paz e Amizade.

Von Grazen, 28/7/2004, 03h11m

Doping: Coors (Borrowed Heaven), The diary of Alicia Keys, gelados da Hagen-Dasz.

domingo, fevereiro 11, 2007

O Congresso de Heterónimos

Como pode ser tão belo um fim de tarde?
A Dra. Tereza Frisa-Robes não o compreendia. Era coisa que a ultrapassava. Mas decidiu comemorar o fenómeno: organizando um grandioso congresso de heterónimos. O “1º Maxi-Congresso da Heteronímia Pessoana” decorreu num castelo de Edimburgo, próximo do Loch Ness.
O monstro não foi convidado, até porque não havia uma certeza cabal da sua existência. E também porque não constava do “mailing”. Para além de várias opiniões mais do que duvidosas sobre a obra do poeta português.
Em compensação, Chris de Burgh compareceu, na qualidade de convidado especial, patrocinado pelo uísque “Highland Bataclan”, cujo nome derivava de um famoso bordel, em tempos frequentado pelo escritor Jorge Amado.
Os trabalhos decorreram sempre de madrugada, entre a meia-noite e as oito da manhã, porque os heterónimos adoravam jogar golfe de tarde e depois do jantar não prescindiam de abalar até ao “Deep Throat”, um bar acolhedor, propriedade de Linda Amor-de-Laço, uma venezuelana de ascendência hawaiana, radicada na Escócia há um ror de anos.
O único heterónimo que não aguentava a bebida era o Chevalier de Pas, que tinha a resistência ao álcool própria de uma criança de seis anos. Por isso, era necessário que alguém o carregasse às costas, de regresso ao castelo, onde assistia às sessões em permanente estado de embriaguez letárgica.
A ordem de trabalhos era muitíssimo completa, ou não tivesse sido proposta pela Dra. Tereza Frisa-Robes. Sem mais delongas, aqui se dá à estampa a futuramente super-citada ordem de trabalhos:
1- Sessão de abertura. Boas-vindas aos participantes. Uma palavra amiga.
2- A heteronímia em Pessoa: brincadeira parva, esquizofrenia, passatempo ou obsessão literária?
3– Aprovação do orçamento para 2006/2007.
4– Assuntos diversos.

A Dra. Tereza Frisa-Robes surgiu no salão nobre do castelo temperada de um esplendor particularmente vistoso, ou não exibisse um faíscante vestido de lantejoulas vermelhas, para condizer com a cor das novas lentes de contacto, o verniz das unhas e os cabelos. E os 714 heterónimos desconheciam ainda que ela tinha um “piercing” da mesma cor no clítoris. Claro que a “lingerie” também condizia, será escusado dizê-lo.
Tomou lugar no cadeirão da mesa da presidência, ao lado dos heterónimos mais respeitados, como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares e Alberto Caeiro.
Com a devida vénia, aqui reproduzimos o seu discurso de abertura:
“Queridos heterónimos: é com grande prazer que os recebemos hoje aqui. Sejam muito bem-vindos e saibam que lhes estou muito grata. A vossa presença, para além de factor dinamizador da cultura portuguesa e da diáspora, é uma fonte enorme de satisfação pessoal para quem tem dedicado uma grande parte da sua vida num ‘voyeurismo’ bem intencionado, procurando descobrir mais e mais ainda sobre todos vós.
A vossa presença é ainda uma resposta a todos aqueles que se permitiram duvidar da vossa existência. Que este congresso seja o primeiro de muitos. Se precisarem de alguma coisa, não hesitem em dirigir-se à Maria José, a responsável pelo secretariado, a quem desde já agradeço a disponibilidade manifestada, a simpatia e o entusiasmo com que me ajudou a organizar este ajuntamento. Sem ela, nada teria sido possível”.
O ponto número 2 foi debatido ao longo de duas semanas de madrugadas intelectualmente brilhantes. Merece particular destaque a comunicação dos irmãos Alexander e Charles James Search, que se deslocaram de Durban até à Escócia, tendo redigido o “paper” a bordo do transatlântico “Salty Sea”.
O “paper” intitulava-se “A heteronímia como antepassado da Playstation”. Basicamente, defendia a tese de que Fernando Pessoa criara os heterónimos porque não existia ainda Playstation.
Embora o ambiente de discussão nunca tivesse ultrapassado a fronteira da educação, a bem da verdade será forçoso confessar que algumas comunicações houve que roçaram perigosamente a fronteira da má educação, do caciquismo e da difamação.
Estará dentro desta classificação o trabalho de António Mora. O título é algo violento, tanto como o conteúdo da comunicação: “A heteronímia como masturbação psíquica de um sujeito afectado pela idiossincrasia do seu tempo”.

Em breves linhas, podemos adiantar que António Mora defendia a insanidade mental do poeta, devida a um incontrolado consumo de bebidas espirituosas, para além de outros factores.
António Mora foi vaiado de forma insistente durante cerca de 15 minutos, cronometrados por Maria José, que era extremamente rigorosa e achava importante referir pormenores como estes na acta do congresso.
O ambiente desanuviou a seguir ao almoço, altura em que 523 dos 714 heterónimos acederam de muito boa vontade em participar numa prova de orientação, com algumas características de “Rally Paper”. Os heterónimos que não quiseram participar dividiram-se pelas mais variadas actividades: sexo puro e duro, sexo meiguinho, lerpa, xadrez, damas, chinquilho, burro-em-pé, bisca dos nove, esgrima e simples convívio.
No dia seguinte, passou-se à discussão do orçamento para 2006/2007. Como em tantas assembleias por esse país fora, a matéria do orçamento é sempre pretexto para debates acalorados, algo técnicos e maçudos. Os que percebem muito do assunto costumam perder-se em pormenores cansativos; os que não percebem nada alvitram as coisas mais disparatadas.
Valeu o peso da antiguidade de Ricardo Reis para pacificar os trabalhos e proceder à votação. Numa alocução marcada pela sobriedade, Ricardo Reis defendeu de forma convicta e apaixonada os dez por cento do orçamento dedicados a criar um prémio literário para os heterónimos médicos a viver no Brasil.
“O facto de eu ser médico, heterónimo e viver no Brasil não pesou na minha opinião, posso assegurar-vos. Mas acho muito importante que haja um prémio literário para todos aqueles que estão nesta situação. É factor sobremaneira relevante para uma heteronímia mais justa e mais humana, no seguimento das conquistas de Abril”.
Alberto Caeiro debruçou-se essencialmente sobre aspectos rurais da heteronímia:
“É bastante incompreensível que na zona do Ribatejo seja tão pouco conhecida a obra de Fernando Pessoa. Eu tenho apenas a quarta classe, mas possuo uma cultura herdada das estrelas, dos ciclos da terra, da sabedoria que me advém do cheiro do estrume”.
O heterónimo falou durante cerca de 20 minutos, mas o tédio apossou-se da assembleia, apesar do estatuto respeitado de Alberto Caeiro.
O heterónimo Ferrão Fragoso (um ex-maoista com cara de cherne), apurado à última da hora como heterónimo, teve uma atitude de alguma deselegância e gritou, bem alto, para quem o quisesse ouvir:
“Ninguém calará a voz da classe operária.O camarada Alberto Caeiro é uma fraude. Não há nenhum ribatejano puro que seja louro e de olhos azuis. Não posso calar a minha revolta perante mais este atentado burguês”.

Finalmente, o orçamento foi aprovado, quase por unanimidade. Contemplava a sponsorização de alguns itens particularmente relevantes para a heteronímia pessoana, tais como: asa-delta, visitas de estudo aos bares mais consagrados de todo o mundo, subsídios à compra de viaturas de alta cilindrada, publicação em edições de luxo de todos os materiais escritos pelos heterónimos, independentemente da sua qualidade.
O último ponto da ordem de trabalhos foi bastante interessante, como seria de esperar de heterónimos de nível intelectual tão elevado. A contribuição mais marcante terá sido a de Álvaro de Campos, que propôs a criação de um grupo de trabalho.
“Longe de mim a defesa da censura. Quem me conhece sabe que eu sou o primeiro defensor das amplas liberdades literárias, sexuais e cívicas. Mas é perfeitamente vergonhoso o que estão a fazer à obra de Fernando Pessoa, colocando-o no mesmo plano de autores menores como Camões, Eça de Queiroz ou Lobo Antunes”.
Álvaro de Campos lembrou que nenhum destes autores possuía um heterónimo que fosse, provando a pobreza da sua criação literária. Criticou ainda a linguagem rebuscada dos “Lusíadas”, a obsessão revisionista de Eça de Queiroz e o processo de escrita de Lobo Antunes, que apelidou de “leit-motiv por marés”.
No seguimento da sua intervenção foi criado um grupo de trabalho coordenado por F.Antunes. O “Comité de Vigilância Literária” tinha por tarefa a criação de um “lobby” na Assembleia da República, para conseguir que uma percentagem do IRS cobrado revertesse para a “Associação dos Heterónimos Pessoanos”.
O comité dividir-se-ia em vários pelouros, a saber: Índex, Acções Punitivas, Finanças e Lazer.
Desde logo ficou decidido que o pelouro do Índex se encarregaria de hierarquizar um conjunto de obras perniciosas à literatura mundial. Em conjugação estreita com o pelouro das Acções Punitivas, o pelouro Índex se encarregaria de banir estas obras das bibliotecas, livrarias e outros locais públicos. Mas como a democracia é um valor fundamental, todo e qualquer particular que possuísse estas obras não deveria sofrer represálias. Mesmo os possuidores de livros de José Saramago.
O pelouro das Acções Punitivas basear-se-ia no modus operandi da ETA, das Brigadas Vermelhas e do IRA. Em casos mais extremos, seria possível contratar os serviços de organizações mais extremistas, designadamente oriundas do mundo árabe. Mas sempre na condição de avençados ou em empreitada, para não onerar a heteronímia pessoana com encargos de segurança social.

O pelouro das Finanças operaria segundo os moldes já estabelecidos pela associação, mas em casos especiais seria aprovado em Assembleia-Geral um fundo de emergência, aplicável a casos mais complexos.
O pelouro do Lazer tinha por objectivo proporcionar uma vida sã aos membros do comité, de molde a que estivessem sempre nas melhores condições para trabalhar. Caber-lhe-ia organizar deslocações a clubes de strip, a casas de massagem, ao cinema, a restaurantes de luxo, etc.
Cumprida a ordem de trabalhos, o congresso terminou com uma magnífica sessão de fogo-de-artifício. No relvado em frente do castelo os heterónimos correram nus pela relva, fizeram malabarismos com garrafas de champanhe francês, declamaram Fernando Pessoa, jogaram futebol, deram largas à sua dinâmica cultural.
Ora ainda bem.

Von Grazen, 11/7/2004

domingo, fevereiro 04, 2007

Teimoso 73

Esta é a história de Osvaldo (O.), o 73º heterónimo de Fernando Pessoa. Uma história de hombridade, sacrifício, coerência e muita teimosia. Esta é a História D’O.
O. nasceu numa despensa cheia de brinquedos velhos. Teve uma infância perfeitamente normal e o seu maior amigo foi Pinóquio, com quem descobriu os prazeres do sexo, masturbando-se nos nós da madeira e comparando o tamanho dos narizes.
— Gostava tanto de ser o Cyrano — desabafava Pinóquio com frequência.
— Pede ao Gepetto — respondia O., a quem todos tratavam por Osvaldinho, na altura.
A vida correu sempre bem a Osvaldinho. Era aplicado na escola e só tinha um ligeiro bloqueio com o 7x9 e com a palavra obsessão, que confundia frequentemente com obcecado.
Mas o desabrochar para a vida pode revelar a crueldade do mundo. Fernando António, o seu progenitor, bem lhe dizia: “Não aceites charros de estranhos. Não aceites boleias perto de monumentos nacionais. Não entres em filmes pornográficos de baixo orçamento. Não aceites participar em reality shows. Não leias o ‘Ulisses’, do Joyce, todo de seguida. E salta o prefácio, senão nem consegues começar”.
Osvaldinho assim fez. Mas os perigos são tantos no mundo de hoje que é difícil cobrir todas as possibilidades. Depois, é tudo uma questão de sorte. E o azar bateu à porta de Osvaldinho numa tarde de Dezembro, à saída do Circo Mariano.
A última coisa de que Osvaldinho se lembra é de ver os palhaços a pedir aos miúdos para bater palminhas. Depois, sentiu um lenço na cara e acordou com uma grande dor de cabeça, num sítio muito escuro.
Gritou imenso e pediu socorro. Ouvia vozes, mas não podia precisar se eram de homem, mulher ou criança. A fome era muita. A sede também. Já para não falar do frio e da humidade.
Quando nasceu o dia, Osvaldo percebeu que estava prisioneiro numa masmorra miserável, que nem sequer possuía condições mínimas para as ratazanas. Conseguiu amarinhar até uma pequena janela que dava para a rua. Chovia a potes. Trovejava. Havia raios e coriscos.
A pesada porta de ferro abriu-se de repente. Um maravilhoso mulherão de metro e 80 de altura, Mademoiselle Corinix, sorriu-lhe com a boca toda e passou-lhe a mão pela testa:
— Tens febre, Osvaldinho ?
Osvaldinho sorriu, pensou que o pesadelo estava para acabar, que tudo não passara de um sonho mau. Ia acordar no circo e bater muitas palmas aos palhaços. Mas só teve direito a uma garrafa de “Napoléon” e um livro de contos de terror do Edgar Alan Poe.
— Por agora, não consegui trazer-te mais nada. E mesmo isto foi às escondidas de Madame Terezinha.
Mademoiselle Corinix deu-lhe um beijinho na testa e saiu, a abanar as ancas, como se estivesse a desfilar no Carnaval do Rio.
Osvaldinho, que era um puro de alma, pôs-se a pensar bastante e descobriu que tinha de ser cem por cento racional. Não havia nada a fazer naquele momento. E tratou de recuperar forças, bebendo meia garrafa de “Napoléon” e lendo cinco contos do Edgar.
Duas horas depois achava que a masmorra devia ter ar condicionado. Quando Madame Terezinha entrou, Osvaldinho estava em tronco nu, a rir sozinho e a imitar o orantotango que entrava nos filmes do Clint Eastwood.
Madame Terezinha (Tereza Vibra-Golpes de nome de baptismo) era uma mulher interessante, encadernada por um fato de cabedal negro e botas de tacão alto. Tinha o rosto bonito emoldurado por maquilhagem preto-e-prata, como o salão do Casino Estoril.
— Olá, Osvaldinho. Chamo-me Madame Terezinha. Não te quero fazer nenhum mal. Se colaborares, não te vai acontecer nada e podes juntar-te rapidamente ao Fernando António. Mas se ofereceres qualquer tipo de resistência, fica sabendo que posso ser cruel. Para já, não te digo mais nada. Vou-te deixar um tabuleiro com comida e um álbum de banda desenhada do Guido Crepax. Logo à noite volto, para saber a tua resposta.
Osvaldinho achou aquilo deveras estranho e misterioso. Quem era a bizarra Madame Terezinha e o que podia querer dele? Quem era Mademoiselle Corinix, com uma expressão tão fina e delicada?
Pouco depois, Mademoiselle Corinix voltou a entrar na masmorra, trazendo almofadas, uma cama de água portátil, cobertores, dois pares de belíssimos candelabros (comprados na Feira da Ladra a um toxicodependente em último grau) e uma pastilha “Easy Date”.
— Toma, é um calmante.
Osvaldinho, com o coração prenhe de boa fé, tomou a pastilha sem desconfianças. Duas horas depois, Mademoiselle Corinix abandonou a masmorra, com um sorriso de plena satisfação. Osvaldinho não se lembra bem do que aconteceu, mas tem a certeza de que Mademoiselle Corinix lhe deu um beijinho na testa antes de sair.

No outro dia, Osvaldinho acordou cansado, mas feliz, embora não soubesse explicar porquê. Quando Madame Terezinha entrou na masmorra do Castelo de Roissy, com duas panteras negras pela trela, Osvaldinho tinha decidido não fazer nada que fosse proíbido pela Convenção de Genebra.
— Madame Terezinha, eu não quero incomodar, mas só lhe posso dizer o meu nome e a minha patente.
As panteras negras (muito inteligentes e com uma vida sexual activa, o que dá sempre boa disposição) atiraram-se para o chão, perdidas de riso. Sim, porque tinham aprendido a rir com as hienas da masmorra 1111, onde estava detido um quarteto musical.
— Osvaldinho, não se trata disso. Preciso de ti para duas coisas: primeiro, para escravo sexual da Rainha Má da Branca de Neve, que é uma convidada de cerimónia e já me estragou muitos criados. Segundo, quero que assines uma declaração a garantir-me os direitos de merchandising do teu heterónimo. O mercado é muito concorrencial e temos de estar um lance à frente da competição.
Osvaldinho, apesar de ser uma alma cândida, percebeu que aquilo era mais uma golpada de SAD, SGPS ou outro esquema qualquer marado. Népias, é o assinas.
— Aceito a 50 por cento. Quando a Madame quiser mudo-me para o quarto da Rainha Má.
Madame Terezinha sorriu, mas notou-se algum desconforto na sua face. Uma das panteras abanou a cabeça em sinal de desaprovação e constrangimento. A outra sentou-se e coçou uma orelha com a pata esquerda. Sem perder mais tempo, Madame Terezinha deu meia-volta. Osvaldinho ainda ouviu nitidamente a última frase, que já não lhe soou bem:
— Talvez mudes de ideias depois de passares uma noite com Mademoiselle Corinix.
A menos que houvesse ali qualquer cena à Luís de Matos, Osvaldinho não estava a perceber bem qual era o problema. Mademoiselle Corinix era muito simpática e usava um perfume soberbo: Chinelo 5.
Ao fim da tarde já não pensava da mesma forma. Mademoiselle Corinix tinha entrado na masmorra com um fato todo cheio de pregos, uma coleira de Yorkshire Terrier e um cachecol dos Ultras Roissy.
Agrilhoou Osvaldinho às paredes frias e húmidas, de costas viradas ao público, chicoteou-o com toda a força que os seus lindos braços lhe permitiam e depois perguntou-lhe com uma voz que cheirava a fel:
— Então, Osvaldo, assinas ou não?
Osvaldinho não assinou, numa atitude que muitos podem considerar como um grave erro existencial. Mademoiselle Corinix não esteve com contemplações. Já tinha visto tudo o que queria.
Muniu-se de um “strap-on” do mais duro latex do planeta e sodomizou Osvaldinho com uma frialdade digna de um cubo de gelo gronelandês, depois de ter rodado um anúncio de frigoríficos no pólo norte.
Escusado será dizer, sem lubrificante.
Osvaldinho foi deixado só na masmorra, sem comida nem bebida.
Nessa noite, chorou muito. Lembrou-se do Pinóquio e de todos os amigos que tinha deixado para trás. Fazia-lhe muita confusão que Mademoiselle Corinix o tivesse penalizado daquela forma. Osvaldinho não tinha feito nada. Aprendeu a lição mais dura da sua existência: uma SAD, uma SGPS, quando querem, acabam sempre por ir ao pacote de um cidadão isolado. Não adianta resistir.
No outro dia, foi transferido para uma masmorra mais luminosa, onde havia uma grande arca. Permaneceu amarrado durante 16 horas seguidas. Depois, Madame Terezinha chegou à masmorra com um vestido transparente laranja, sapatos verde-alface e um véu róseo a tapar-lhe o rosto.
— Assinas?
Osvaldinho não assinou e foi metido na arca.
Não queria entrar, mas depressa percebeu que não era de bom tom resistir ao chicote de Tereza Vibra-Golpes.
Quando o cadeado foi fechado, Osvaldinho virou-se para trás e compreendeu que a arca era muito maior do que parecia. Sob a aparência de uma vulgar arca para heterónimos, possuía a complexidade subterrânea de um palácio.
— Olha lá, pá, despacha-te. Estão a servir o ponche das dez da noite. Depois só há groguinho ao pequeno-almoço.
Quem assim falava era o heterónimo 85, que também não tinha assinado nada.
— Pois é, eu sou o Fernando Whitman, um heterónimo à moda de Walt Whitman. Tenho um livro intitulado “Folhas de graxa”. Mas a vaca da Vibra-Golpes não o edita enquanto eu não assinar. Sem a autorização dela nada pode sair da arca. A Corinix também te aviou?

Osvaldinho foi-se integrando na comunidade dos heterónimos e passou ao estado adulto sem dar por nada. A vida dentro da arca estava muito organizada e não faltava leitura. Mas a esperança era coisa que poucos tinham. Enquanto não cedessem aos interesses perversos da gerência do Castelo de Roissy, não havia hipótese nenhuma de voltar a uma vida normal.
— Mas a polícia não faz nada ? — perguntou Osvaldinho ao Fernando Whitman, ao terceiro dia de encarceramento na arca.
— Isso sim. Estão todos feitos uns com os outros. Isto dos heterónimos é um grande negócio. Não faltam arcas pelo mundo fora. Nunca ouviste falar da Resistência?
Osvaldinho nunca tinha ouvido falar. Parece que havia movimentos subversivos por todo o Mundo. Os mais activos eram liderados por heterónimos de Mário de Carvalho e António Lobo Antunes. O Marinho Sueco (heterónimo 13 de Mário de Carvalho) costumava utilizar uma singela palavra de ordem para convocar as reuniões secretas: “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. O “Danças com Lobos” (heterónimo 17 de António Lobo Antunes) dava a contra-senha: “Não entres tão depressa nesta noite escura”.
O presidente da Assembleia-Geral da Resistência era o Pequeno Príncipe (heterónimo 15 de Carlos Reis, que tinha fugido de um armário da Biblioteca Nacional disfarçado com uma barba à Alexandre Herculano), que começava sempre os trabalhos da seguinte forma:
— Bem-vindos a mais uma sessão de trabalho da Resistência dos Heterónimos Literários. Hoje vamos votar mais uma proposta de evasão, que nos chegou dos nossos colegas americanos. O heterónimo 127 de Brett Easton Ellis pede autorização para seguir em frente com um plano de fuga da arca maior de Alcatraz. Quem vota a favor? Quem vota contra? Quem se abstém? Aprovado por unanimidade. Senhor secretário, registe em acta, por obséquio, que o heterónimo 127 do nosso camarada americano pode fugir quando quiser. Nada mais por hoje. Até à próxima Assembleia.
Aos poucos, os heterónimos de Fernando Pessoa foram fenecendo ao bafio da arca, mirrados de esperança, bloqueados por crises criativas, fartos de ler os mesmo livros, ver as mesmas caras.

Osvaldinho decidiu resistir até poder. Passados muitos anos, só havia dois heterónimos de Fernando Pessoa na arca do Castelo de Roissy: Osvaldinho e Abade Faria, o pseudónimo escolástico, que se tentou evadir num saco de roupa suja. Mas como a roupa suja era muita no meio literário, enganou-se no saco e acabou por ir desembocar na Academia Sueca. Foi recapturado e hoje ainda cumpre pena numa cave do Palácio da Pena, em Sintra, mesmo ao lado de Little Ludwig, o pseudónimo louco de Luís Da Baviera, aprisionado quando participava no Troféu BMW sem carta de condução.

Era óptimo poder acabar esta história com um final feliz.
Infelizmente, por exigências de programação, tal não é possível.
Osvaldinho ainda vai continuar preso por muito tempo.
Fica para a próxima.
Esta foi a História D’O.

Von Grazen, 13/3/2003, 06h25m